Por Frederico Carvalho Felipe*
Nos últimos meses, com
as eleições em voga em nosso país, vivemos uma polarização social calcada em
premissas maniqueístas que se assemelham às narrativas melodramáticas que o
cinema utiliza-se com frequência. A dicotomia de discursos e narrativas
midiáticas expostas por cada candidato molda opiniões e ideologias e também
constrói personagens em uma mise-en-scène onde todos os elementos que a compõe
se destacam e agregam valor à trama, as vezes de maneira dramática, outras
trágicas e até cômicas, porém sempre narrativas e repletas de signos que
representam de certa forma a nossa sociedade. No Brasil, o tom das
pornô-chanchadas dita muitos acontecimentos nesse pleito, com suas esculhambações,
deboches, alegorias, teor sexual grotesco explícito e hipocrisias. Tecendo uma
mescla de ficção-científica distópica, manipulação midiática, complô, fugas,
facadas, viradas e broxadas, a atual fotografia política do país expõe suas
vísceras em uma espécie de novela repleta de reviravoltas, cujo roteiro final
se oculta de todos, inclusive dos atores e equipe, até o fim, como foi em A Próxima Vítima, de Sílvio de Abreu,
exibida pela Rede Globo em 1995.
Em meio a esse clima de
terror e comédia, típico do “terrir” tupiniquim levado outrora às telonas por
nomes folclóricos do cinema de invenção brasileiro, busquei em uma animação
comercial o ponto de partida deste texto, intitulada “Pé Pequeno” (EUA, 2018,
Direção de Karey Kirkpatrick). Entrei na sala de cinema sem grandes
expectativas em relação ao que iria ver e presenciei um filme que, apesar de
seguir a velha fórmula narrativa e de pouco propor artisticamente e enquanto linguagem audiovisual, em alguns
momentos transcende uma lenda e nos abre a imaginação para algumas possíveis
interpretações e reflexões acerca de nosso contexto histórico-social atual
mundial e local.
Criações artísticas
provenientes do imaginário popular e ricas em elementos simbólicos ocupam um
espaço importante entre o racional, o mágico, o sagrado e o profano no que diz
respeito às formas de representação em nossa cultura. Comunidades em diferentes períodos e locais
ilustram seus medos, angústias, crenças, experiências, percepções e expectativas
de futuro de diversas maneiras. O homem, em sua trajetória, procura dar sentido
ao caos da existência e se situar no mundo por meio de mitos e lendas que
abordam, muitas vezes, seres fantásticos. Tais seres integram uma área sombria configurada a partir de temas que ainda refletem certo
mal-estar e inquietação em nossas vidas, como a morte, a angústia, a violência,
a culpa, o diferente, o estranho, o “outro”, entre outras denominações. Tais temas são bastante abordados nessas eleições, que remetem inclusive à ecos de um período
sombrio já vivido por países como Alemanha (com Hitler), Itália (com Mussolini),
Espanha (com Franco), Portugal (com Salazar), Chile, Brasil, Argentina (com
suas respectivas ditaduras), entre outros.
Retomando o filme, é
abordado o mito do Pé Grande, bastante difundido na América do Norte e calcado
na lenda dos Yetis: seres gigantes, abomináveis, peludos e ferozes que vivem na
neve e são temidos e combatidos como monstros pelos seres humanos. No filme,
que tem um tratamento visual e sonoro incrível, tais seres vivem no alto de uma
grande montanha situada acima das nuvens e os seres humanos são tidos como um
mito, o que dá nome ao filme e causa medo nos Yetis: os “Pé Pequenos”.
Os Yetis seguem leis
próprias baseadas em lendas bastante parecidas com as lendas antigas da história
da humanidade, as quais são relatados seres poderosos que regem e habitam o
mundo. Tais lendas são tratadas como dogmas que se estabelecem pelo discurso do
medo, em relação aos indivíduos que, por isso, temem em desobedecer tais
“cláusulas” pétreas de tal sociedade. Uma delas diz respeito a nunca ir abaixo
da montanha, além das nuvens, o que remete ao famoso Mito da Caverna de Platão e, também de forma alegórica, às
manipulações diversas que estamos sujeitos em nosso cotidiano pela mídia,
instituições religiosas, políticas, fake
news, entre outras.
Posteriormente, na
narrativa é mostrado que tais discursos dogmáticos eram utilizados ali com a
pretensão de salvar os Yetis da extinção, pois seu contato com os humanos já
havia aniquilado grande parte da espécie. Vemos nessa parte, tanto por lado dos
humanos quantos dos Yetis, discursos típicos de regimes totalitários baseados
em premissas como “isso é um mal necessário”, “a mentira é pra nos proteger” ou
ainda “nós acima de tudo e de todos”, bem parecido com o slogan nazista que
outrora dizia “Alemanha acima de tudo”, complementado hoje com “Deus acima de
todos” por certas figuras.
Neste sentido, uma
reflexão possível que o filme causa é referente à ideia da representação do
“outro”, muitas vezes tido e repelido socialmente como “estranho”, típico de
abordagens narrativas que envolvem monstros e seres fantásticos, como o Frankenstein, Zumbis, Lobisomens, Vampiros, etc. Seguindo as ideias de Zigmunt Bauman, em
sua obra O mal-estar da pós-modernidade (1998), a fobia e repulsa que um ser, por mais
bondoso que seja, causa em outro, apenas por ser diferente, traduz o julgamento
social latente expondo as chagas culturais típicas da humanidade. A diversidade
utópica vislumbrada pelos protagonistas se depara com percalços e limites
socioculturais baseados no medo e na ideia de ameaça, gerando cisões e tensões
entre as diferentes criaturas e dentro das próprias comunidades tidas como
iguais. Digo “tidas como iguais” pelo fato de que ninguém é igual a ninguém em
nenhum lugar do mundo. Por mais que seja parecido, cada indivíduo, seja de qual
espécie for, percebe e experimenta o mundo de uma forma única e completamente
distinta de outro, e isso se traduz na harmonia da vida em nosso planeta.
Os monstros, de forma
geral, convergem em si mesmos – enquanto construção arquetípica e em nosso
imaginário – diferentes lendas e superstições, articulando um mosaico de
pavores sem uma determinada uniformidade física ou moral, como se cada terror ou
maldade lhe trouxesse novos ganhos em atributos ou saciasse sua alma obscura
aos olhos humanos, que usualmente reagem contra eles de maneira violenta. Em comum,
vê-se uma ferocidade antropofágica bárbara destoada do cânone, cuja função é
ser mau em sua ação destruidora, matando, agredindo, perseguindo e
aterrorizando, como uma representação do “outro”, do inimigo, do alheio, do
ataque inesperado e depredatório, deformando e ampliando o “invasor” ao status
monstruoso daquilo que devemos, de alguma forma, buscar combater dentro de nós
mesmos.
Porém, o que as vezes
pode escapar em relação à tudo isso é a percepção de que tais representações
ilustram, como um espelho, nossa própria face frente ao que não concordamos ou
é destoante de nossos valores institucionalizados. Sendo assim, o pior de todos os
monstros somos nós mesmos e no filme nos reconhecemos assim e refletimos sobre
o quanto a espécie humana é terrível, agressiva e feroz em relação ao que não
compreende ou não aceita.
Umberto Eco em sua obra
História da Feiúra (2015, p. 436)
coloca que “a arte dos vários séculos tem voltado com insistência a representar
o feio. Por mais marginal que seja, sua voz tenta recordar que há neste mundo
algo de irredutível e maligno.” Como um filme não é obra apenas do seus criadores,
se completando em ciclo de interpretação, compreensão, associação e
ressignificação também nas mentes dos espectadores, no fim das contas, mesmo
fechando com uma mensagem de confraternização e exaltação à diversidade e à
tolerância, o que creio ser importante – ludicamente falando – para as novas
gerações, a obra toca em pontos importantes que nos mostram que muito da suposta
maldade presente no mundo é gerada por nós mesmo, que muitas vezes nos
esquecemos que vivemos em uma coletividade social, ambiental e diversificada culturalmente.
A obra aponta reflexões em relação ao momento atual que vivemos, com essa pressão (destaque para
a música Under Pressure, parceria do
Queen com David Bowie, muito bem adaptada e presente no filme) e essa onda
conservadora que nos assola e ascende o ódio em diversos níveis. Odiamos o
trânsito caótico das grandes cidades, mas passamos por cima de ciclistas e
odiamos a ideia de traçar o país com trilhos ferroviários, pois interesses
econômicos estão em jogo e odiamos perder, mesmo quando o intuito é que todos
ganhem. Odiamos que todos ganhem. Neste último caso, em especial, o ódio se
mostra disfarçado de gana, principalmente se situado no nível político da
discussão. A mesma gana do ocorrido em Mariana, que não olha além do próprio
umbigo e da margem de lucro e se traduz sem escrúpulos em atentados contra a
sociedade, a vida, e a democracia.
A gana traduzida em
ódio. A gana de ganhar somente pelo fato de ser o dono da bola e não aceitar
que outras pessoas pensem de forma diferente da sua e, pior ainda, de enxergar
o diferente como inferior. O ódio sob a alCunha
hipócrita do egoísmo de chamar de “mito” aqueles que mentem e distorcem a realidade, disseminando ódio à humanidade e à diversidade. O ódio que
nos afasta da luz e nos aproxima do lado sombrio da força. O ódio rancoroso e
egoísta de querer que as coisas sejam somente da forma que achamos correto, sem
enxergar novas possibilidades. O ódio traduzido em apego a bens de consumo e
materiais ou a ideologias fechadas e intransigentes a mudanças e a diálogos.
Diálogos que não existem, pois não há debate, apenas ódio: opressor;
verticalizado; de cima pra baixo.
Podemos, de certa
forma, refletir sobre nós mesmos, como os Yetis ali representados: uma sociedade
condenada e que será extinta por ela mesma se não se atentar que não se pode vencer o ódio com mais ódio e mentiras, isso apenas o aumenta, da mesma forma que a
violência gera mais violência. No filme vemos, mesmo que de maneira utópica,
que o amor, a união e a diversidade é a resistência a essa cultura armamentista
calcada em valores de ódio e que vem sendo aclamada como ideal em nosso
cotidiano. Eu sigo na resistência pelo amor (ou pelo menos tento), mesmo sujeito
a erros durante o caminho. Busco fazer isso por meio de autocríticas que vão
pelo viés da inclusão no discurso e maneira de pensar e agir. E você, qual o
seu discurso? Excludente ou includente?
*Frederico Carvalho Felipe é mestre em Arte e Cultura Visual, especialista em Cinema, bacharel em Relações Internacionais e professor de fotografia, audiovisual, semiótica e linguagem visual. E-mail: fredcfelipe@hotmail.com
*Frederico Carvalho Felipe é mestre em Arte e Cultura Visual, especialista em Cinema, bacharel em Relações Internacionais e professor de fotografia, audiovisual, semiótica e linguagem visual. E-mail: fredcfelipe@hotmail.com
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