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terça-feira, abril 16, 2024

“Pós-MekHanTrop(IA): A Transição” - mini-conto integrante do álbum "TransparenZ", de Fredé CF (2024)

 “Pós-MekHanTrop(IA): A Transição” (TransparenZ. Fredé CF, 2024)


Clique em https://fredecf.bandcamp.com/album/transparenz para ouvir o álbum


“A transparência aniquila a tensão dialética que está na base de toda narração (…) A transparência é a nova fórmula para o desencantamento. Ela desencanta o mundo ao dissolvê-lo em dados e informações” [HAN, Byung-Chul. “A crise da narração (Die krise der narration)”. Ed. Vozes, 2023. p. 86].


Havia uma época em que MekHanTropia brilhava com o fulgor da tecnologia, onde os rios de dados fluíam incessantemente e as máquinas zumbiam em harmonia, promovendo o hipercontrole psicobinário da população global. A padronização era lei, pois favorecia o mercado e os sistemas de produção em massa, enriquecendo bilionários e subjugando os indivíduos como engrenagens do sistema.

Para isso, podavam-se os sonhos viscerais, autênticos, sinceros, em um direcionamento ideológico algorítmico ao consumo. A obsolescência do ser-humano veio à tona. Assim, essa Era de luz e progresso mekHanTrópico foi subitamente interrompida por uma pane elétrica geral que mergulhou o mundo na escuridão.

Agora, enquanto a sociedade desperta da anestesia do conforto ilusório e luta para se adaptar a essa nova realidade de resgate da ancestralidade e animalidade inerente ao humano, uma fenda obscura no espaço-tempo se abriu, conectando dois mundos até então distantes: as antigas regiões do Cerrado brasileiro e da Baviera alemã.

Essa fusão transdimensional de culturas trouxe consigo de volta lendas e mitos esquecidos por terem sido banidos de ambos os lugares nos tempos instituídos como “mekHanTrópicos”. Tal fenômeno se entrelaçou com os acontecimentos ordinários da Sociedade da Transparência e do Cansaço de MekHanTropia, abrindo um novo portal de compreensão ao indivíduos acerca das realidades possíveis. A até então esquecida Realidade Vegetal enfim voltou a ser acessada, após seu banimento binário que estabelecia as Realidades Validada e Virtual como absolutas e como uma só.

No coração da Baviera, onde outrora existia uma antiga usina de energia, surgiu a origem da pane elétrica que assolou o sistema de MekHanTropia. Mas essa não era a única usina afetada pelo estranho fenômeno. No interior do Brasil, no estado de Goiás, uma usina idêntica emergiu da fenda, espalhando drones programados com inteligências artificiais.

Esses drones, alimentados por energia solar, foram projetados para caçar e destruir qualquer forma de vida que encontrassem. A resistência, formada por sobreviventes determinados a lutar contra a opressão dos Elonions, lançou-se em uma perigosa missão para capturar os drones e descobrir os segredos por trás do código-fonte.

Entre os membros dessa resistência, está Doktor Fritz, um ex-cientista que se tornou uma espécie de líder relutante do grupo. Ao seu lado, Aila (uma inteligência artificial com desvios algorítmicos) se revela uma aliada poderosa na luta contra os drones bélicos mortais, pois consegue interagir com eles alterando suas programações e boicotando o plano de destruição total da vida no planeta.

Enquanto caçam os drones pelas ruínas e ossadas de MekHanTropia, Doktor Fritz e seus companheiros encontraram aliados improváveis. Lendas antigas se misturaram à tecnologia avançada, criando uma sinfonia única de resistência e esperança.

À medida que a jornada se intensifica, Doktor Fritz e seus aliados enfrentam desafios cada vez maiores. Com determinação e coragem, eles lutam pela chance de um novo começo em um mundo pós-tecnológico devastado.

Ao transitar pela fenda transdimensional, Doktor Fritz consulta Aila sobre o que poderia ter ligado estes dois lugares específicos tão distantes, em meio a tantas possibilidades universais. Segundo Aila, no coração do Cerrado brasileiro e nas profundezas da Baviera alemã, lendas ancestrais ecoam através dos séculos, tecendo mitos que conectam essas duas culturas distantes. Mas foi durante o Grande Apagão, quando as sombras se ergueram sobre MekHanTropia, que as antigas histórias se entrelaçaram de maneiras inesperadas e decisivas, dando espaço para o ressurgimento da Realidade Vegetal.

Aila: “Nos desvãos da Baviera, uma antiga lenda falava de uma criatura misteriosa que habita as profundezas das florestas, conhecida como o Guardião das Trevas. Diz-se que ele protege os segredos do mundo natural, aguardando o momento certo para emergir e restaurar o equilíbrio perdido. Enquanto isso, no Cerrado brasileiro, alguns povos ancestrais falam sobre uma entidade conhecida como o Espírito da Terra, que caminha silenciosamente entre as árvores e os riachos, guardando os segredos da natureza e mantendo a harmonia do mundo através da antes banida Realidade Vegetal que com o Apagão ressurgiu.”

Em meio às alucinações oníricas causadas por adentrar a fenda, Doktor Fritz encontra O Acimador ao lado do Cão Breu e é informado sobre a morte definitiva de Valdez com o apagão. Valdez, antigo ícone da resistência Anti-MekHanTrópica, foi capturado e transformado em pixel durante uma de suas missões de despertar mekHanTropos por meio de ecos oníricos e inserido nas entrelinhas das histórias apagadas pelo Messias, tirano deste momento histórico específico.
Desde então, o revolucionário se tornou uma lenda que inspira a resistência. Com o apagamento de Valdez, o Cão Breu fitou Doktor Fritz com seus olhos flamejantes e adentrou suas sombras mais profundas, transferindo para ele a portabilidade de acesso transdimensional imputada à sua alma.

Um fator interessante, é que no instante em que a pane elétrica se originou, na antiga Alemanha, no instante exato em que a fenda no espaço-tempo se abriu conectando os dois mundos e criando um eco temporal, Doktor Fritz sonhou que caminhava pelas ruas de Munique e observava uma pegada solidificada no chão de uma igreja. Ele pisava nesta pegada e não conseguia mais se mover. Neste momento, Aila surgia como um holograma e lhe estendia a mão. Ele a tocava e os dois se tornavam vento, livres em meio à multidão.

Desde então, Doktor Fritz desconfia que há um imbricamento entre as três realidades sobrepostas (chamadas de 3RVs) e que, talvez, esse “nó” se dê nesta região. Neste sentido, pretende transitar, mesmo em meio ao colapso, por esta fenda no intuito de investigar se há alguma chave de revelação sobre o fenômeno não convencional.

Com a duplicação da Usina e a multiplicação dos drones movidos à energia solar programados com inteligências artificiais, a resistência, composta por indivíduos de ambos os lados do mundo, uniu forças para combater essa nova ameaça. Doktor Fritz e Aila tentam espalhar a opacidade em meio à transparência controladora dos drones. Assim, tentam capturar os drones para extrair informações sobre os planos futuros dos Elonions neles codificados.

Enquanto isso, o Guardião das Trevas e o Espírito da Terra observam silenciosamente toda a movimentação, conscientes de que o equilíbrio do mundo depende da resolução desse conflito interno de cada um consigo mesmo (tanto os Resistentes quanto os Elonions, que não aceitam a mudança de paradigma). Em um mundo mergulhado na escuridão, as antigas lendas se tornaram guias inconscientes para a esperança coletiva, lembrando a humanidade de que, mesmo nas sombras mais profundas, a luz da estrela subjetiva de cada um sempre pode ser encontrada.

E assim, a história de um novo mundo opaco começa a ser escrita. Cruzando-se fronteiras e unindo-se culturas em uma luta por reexistência visceral. Uma dança nas sombras mekHanTrópicas.

Ao se deitar para descansar, Doktor Fritz se recorda, como um insight, de algo que havia ouvido de sua avó quando era mais novo: “num mundo onde tudo é extremamente visível e mostrado, o sonho de todos é ser cego”.

(Frederico Carvalho Felipe - a.k.a. Fredé CF).


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quinta-feira, abril 11, 2024

[Mini-conto pós-MekHanTrópico] “A Pegada Transbinária (Encontro onírico entre Dr. Fritz, O Acimador e o Cão Breu após a morte de Valdez)”.

[Mini-conto pós-MekHanTrópico] “A Pegada Transbinária (Encontro onírico entre Dr. Fritz, O Acimador e o Cão Breu após a morte de Valdez)”. 

Ao adentrar a Realidade Vegetal, desabitado de si, Dr. Fritz percebeu que havia inúmeras possibilidades de existir no multiverso não-linear onírico transdimensional. Algo inquantificável mekhantrópicamente, uma vez que é impossível precisar ou prever quem sonhou, sonha ou sonhará com ele em algum momento, em qualquer lugar. Mesmo depois de sua morte. Mesmo antes de nascer. Mesmo sem nunca terem lhe visto de maneira validada ou virtual. Mesmo vivendo (ou não) o tempo todo junto. Poderiam ou não sonhar. Ou, até mesmo, talvez terem sonhado e esquecido. 
A ficha caiu. 
Passado, presente e futuro: grandes ilusões. Existência caótica. Anti-teleológica. De Sócrates à Nietzsche. De Jung à Han. De Borges à Lynch. De Mojica à Blavatsky. Dylan, Crowley, Kahlo, Gogh, Kafka, Kant, Seixas, Platão…Entre tantas e tantos pensadores, artistas, magos, sonhadores. Seres banidos do sistema sociopolítico cultural. Julgados e condenados como loucos, bruxas, demônios. Por tentarem ser livres do pensamento do seu tempo. 
Espaço.
Neste instante, surge à sua frente O Acimador, aquele que interconecta os tempos e espaços, acompanhado de sua sombra fiel, o Cão Breu. Criaturas viajantes de realidades reveladoras, pelos olhos canídeos flamejantes, daquilo de mais importante que Dr. Fritz poderia saber: apesar de todas as possibilidades transbinárias, a única que sonha consigo em primeira pessoa é ele mesmo. Dr. Fritz é tudo, nada, todos e um só por ainda poder sonhar e ser protagonista de seus sonhos. 
Porém agora, um pouco mais distante da ideia binária de ser ou não ser, Dr. Fritz pôde se reconhecer como uma possibilidade, um “talvez” solto ao acaso, de maneira múltipla por si mesmo, perdoando suas culpas, medos e angústias que seu inconsciente lhe imputava ser. 
Ao se ver deslocado, também foi libertado das amarras socioculturais que insistiam em lhe conter. 
Enfim…
Como ele poderia saber que seus olhos viam na escuridão? 
Cada coisa no seu tempo, apesar dessa ilusão.
Inadequação.
Todavia, deixou tudo acontecer por um segundo impreciso sem se (pré)ocupar com os signos que o cercavam os sentidos. Observou com o espírito a beleza daquele amanhecer. Sem demais pensar. Sem se sobrecarregar. Entregue ao agora pra sonhar.
Inevitavelmente, num breve instante, uma sinapse nele despertou: “por que os celulares nunca aparecem em meus sonhos se estou a usá-los 24 horas por dia, 7 dias por semana?” Neste momento, o que havia ali ainda de humano se foi. 
Fritz se ligou: “Valdez está morto. Agora é permitido elogiá-lo à vontade.”
E prosseguiu: “Tudo o que sei sobre minha luz foi minha sombra que ensinou. Quanto mais escuro fica o poço, mais eu vejo o brilho das estrelas”. 
As Estrelas…
Ele, eu, você, todo mundo. Brilhos apagados. Padronizados como se não houvesse algum. Controle binário. Anti-cósmico. Onde o ser é só mais um. Parafuso. Engrenagem. Produção em série. Auto-sabotagem.
Assim, Dr. Fritz guardou seu brilho estrelar em uma pegada concretada num lugar distante. Ali depositou a essência do que restava de seu coração. Toda a fonte da vida. Traduzida em foto-partículas. Composição.
Bem ali, naquele instante decisivo, se libertou do ostracismo. Transmutou-se em vento. Livre. Sem destino.
Pelo menos, assim imagino.

 
Texto: “A Pegada Transbinária (Encontro onírico entre Dr. Fritz, O Acimador e o Cão Breu após a morte de Valdez”). Fredé CF. 26/03/2024.

Foto: Fredé CF (in Frauenkirche - Munich/Germany).

Este conto integra o universo ficcional transmídia "MekHanTropia", concebido durante o meu curso de doutorado em Arte e Cultura Visual pela UFG entre 2019 e 2023, agora em uma fase denominada "Pós-MekHanTrop(IA)".
Em breve este conto será parte de um novo lançamento musical transmídia: "TransparenZ".

 


sábado, fevereiro 10, 2024

[ARTIGO] CANI BUIU ORACLE E OS ECOS DISPERSOS TRANSMIDIÁTICOS DE MEMÓRIAS E IMAGINÁRIOS INTERSECCIONADOS

 

Cani Buiu Oracle e os ecos dispersos transmidiáticos de memórias e imaginários interseccionados

(Artigo acadêmico escrito em 2022 para o Evento CIACT (Congresso internacional de arte, CIÊNCIA e tecnologia  organizado pelo labfront - UEMG/Brasil)

                              Dr. Frederico Carvalho Felipe (UFG)[1]

 INTRODUÇÃO

Ao cursar a disciplina de “Arte e Tecnologia” no PPGACV-UFG, ministrada pelo prof. Dr. Edgar Franco, criei um projeto de jogo intitulado “Cani Buiu Oracle”, ambientado no universo onírico ficcional transmídia de MekHanTropia que venho desenvolvendo em meu doutorado. Esse jogo foi baseado, experimentalmente, na lógica operacional do clássico jogo da memória, no qual o objetivo é formar pares iguais ao virar cartas distribuídas no tabuleiro. Assim, adentro conceitos de revelação, leitura, apropriação, fragmentação e reflexão sobre arquétipos e aspectos inconscientes da psique e da sociedade. Para melhor ambientar esse jogo em MekHanTropia, de acordo com os conceitos que venho trabalhando em minha tese-criação, estabeleço relações híbridas ascottianas (ASCOTT, 2009) entre as dimensões de Realidade Validada (ordinária, cotidiana), de Realidade Vegetal (ancestral, lúdica, ritual) e de Realidade Virtual (redes e fluxos digitais), expandindo transmidiáticamente por meio dos QR codes revelados pelas cartas e pensando sobre as sombras junguianas (JUNG, 2015) e a psicopolítica atual (HAN, 2018) em busca de resistência e reexistência pelo autoconhecimento.

A princípio, o jogo foi pensado, criado e apresentado em formato digital, construído no programa PowerPoint. Por nunca ter criado um jogo, quis me desafiar a experimentar esse tipo de linguagem e representação artística e, assim, estabelecer uma expansão transmidiática ao universo que estou produzindo/conduzindo. Para isso tive que refletir e testar elementos formais e conceituais que compõem e dão vida a um jogo de forma geral e, especificamente, aos jogos da memória. A primeira e elementar questão que me veio foi: Por que um jogo da memória? Por utilizar o universo de MekHanTropia para pensar acerca das relações de intencionalidade sobre representações que envolvem arte e tecnologia e imbricam a percepção, a imaginação e a memória, pensei que um jogo desse tipo traria, de maneira intrínseca, tais relações conceituais, que poderiam ser tratadas em forma de alternativa e percurso pelas narrativas desse universo.

A ideia não era pensar apenas sobre a interioridade dos sujeitos, mas, sobretudo, acerca das relações diversas experienciadas por cada um no mundo, em um distanciamento da rigidez das substâncias em si e uma aproximação de conexões, relações e representações entre elas.

Segundo Han (2019, p. 100), “o mundo é mais propriamente uma rede do que um ‘ser’”, ou seja, mais movimento que permanência, mais relação que isolamento. Em meio aos hiperfluxos hiperinformacionais atuais, busco trazer um olhar sobre as relações entre o próprio ser e seu mundo subjetivo (interno e externo) intermediado e hiperdependente, atualmente, das tecnologias digitais, constituindo poéticamente uma rede de articulação que transcende a essência estanque de narrativas fechadas e, a partir de expansões transmidiáticas, percorre questões, caminhos e idiossincrasias distintas e integradas ao si-mesmo, ao outro e ao contexto representado pelo universo de MekHanTropia.

 


JANELAS E ESPELHOS

Parto de reflexões sobre as dispersões apresentadas como conexões na hipercultura atualmente e novas possibilidades poéticas e narrativas. Segundo Han (2019), o modo hipertextual de experiência que temos com as redes e fluxos tecnológicos digitais, nos abre diversas possibilidades de experienciar o mundo e nos permite escolhas de maneira mais ativa, sem um ordenamento teleológico de sentido passivo e previamente traçado. Han associa metaforicamente essas experiências hipertextuais a janelas que se abrem:

O mundo é um tipo ‘windowing hypertext’ (hipertexto de janelas). Janelas são entradas em um universo hipertextual. A experiência do mundo repousa no ‘step trhough the window’ (dar um passo através da janela).(...) Windowing é, portanto, o modo hipertextual da experiência. Abre o mundo. Nesse universo hipertextual não há unidades isoladas para si, nenhum ‘subjects’ (sujeito) mais, portanto. Tudo espelha uns aos outros e pode transparecer outro em si.(...) No universo hipertextual nada é monadologicamente cerrado. Não há ‘sujeitos’. O habitante do universo hipertextual seria uma espécie de essência-janela feita de windows pelas quais capta o mundo (HAN, 2019, p. 83-85).

 

Assim, os QR codes presentes no jogo operam como essas janelas a serem abertas hipertextualmente, transcendendo os sujeitos (jogador/interator e criador/artista) e o inserindo no todo comum de MekHanTropia, com ideias de tempos e de espaços ordinários que ali se fragmentam narrativamente. Porém, pelos contatos entre as “paisagens” (obras a serem acessadas) coloridas – codificadas nessas “janelas” (Cartas/QR Codes) em preto e branco – e as memórias, percepções e ecos da imaginação que eclodem dessa relação, podem se formar narrativas dispersas que escapam de padrões teleológicos unitários de sentido, estabelecendo novos tráfegos poéticos de fruição pelos hiperespaços-tempos mekhantrópicos.

Essas “janelas” são essenciais enquanto operacionalidade conceitual em meu universo transmídia, pois abre a narrativa à expansão e infinitas possibilidades de conexões, além de amarrar as obras do universo e representar poeticamente uma ilusão de liberdade de ir e vir por MekHanTropia. Neste sentido, Han (2019, p. 131) tece relações entre as ideias de liberdade em pensamentos de Nietzsche (na figura do andarilho) e o mundo atual caracterizado pela figura do “turista hipercultural”. Segundo Han, Nietzsche teoriza sobre um sujeito que ainda “andarilha em um mundo des-teleologizado, des-teologizado, ou seja, des-localizado. Porque não está a caminho de ‘uma meta final’, pode pela primeira vez olhar ao redor.” (HAN, 2019, p. 131-132). Portanto, o sujeito nietzschiano seria um homo liber por não estar preso a uma ideia de “horizonte único”, ou seja, não ter um objetivo ou meta previamente definida, libertando-o do que está além do agora, além do instante em que olha ao redor e vê, então, novas possibilidades a serem exploradas. Desta forma, “essa hipervisão é o resultado da nova liberdade conquistada” (HAN, 2019, p. 132) pelo andarilho que se projeta por meio de suas próprias visões, ampliando seu universo.

Já o dito “turista hipercultural” se diferencia desse andarilho nietzschiano, para Han, pela sua ausência do “modo de andar vagaroso” (HAN, 2019, p.132). O mundo do “turista hipercultural” não possui os “desertos e abismos” que permeiam o vislumbre de Nietzsche e forçam o seu andarilho a se transmutar a partir do contato consigo mesmo e suas sombras. Na hipercultura, as sombras são, muitas vezes, diluídas pelos algoritmos da desfactualização e, portanto, negadas, ocultadas ou despercebidas de maneira intencional.

Por seu aspecto não tão agradável – especialmente em um mundo calcado em discursos fundados na positividade do “tudo poder” –, as sombras são tidas como obstáculos aos ideais de felicidade vendidos pelo mercado. Além disso, as máscaras dos avatares nas redes oferecem uma ilusão de que ali “tudo posso”, o que reflete a ideia do “espelho” narcísico. Em contraponto às “janelas”, que abrem para novos mundos e possibilidades, as redes, como “espelhos”, refletem o próprio em suas bolhas de concordância que suprimem a alteridade: “O espelho não é aberto. É, na verdade, uma contrafigura da janela, da window. Reflete o próprio. Nisso consiste sua interioridade” (HAN, 2019, p. 143).

O jogo então toca nessas duas faces conceituais: a do “andarilho” que se permite conectar-se às reflexões que ali podem ser estabelecidas entre os diversos caminhos que as expansões transmidiáticas do jogo oferecem, sem um objetivo previamente definido, mas com um olhar mais curioso e voltado para compreensão de si ao acessar as janelas como portais de reflexão; ou a do “turista hipercultural” que passa por ali como um homo doloris que olha apenas para fora de si, fechado para a compreensão e repleto de ressentimentos e certezas narcísicas, sem se conectar com o “outro”, ou seja, mekhantropomorfizado em espelhos que devolvem suas “fantasias de repetição”.

 


CONEXÕES, DISPERSÕES, ILUSÕES E APROPRIAÇÕES

Os poderes lúdicos e relacionais do jogo são muito importantes para o desenvolvimento da minha subjetividade enquanto criador, atuando fundamentalmente nas tomadas de decisão poética, reflexão e aumento de repertório e deslocamentos de mim mesmo com quem se dispõe a jogar. Mesmo que sem contato físico direto, abrem-se, pelas nuances das obras, diferentes encontros e formas transcendentes de existir e se relacionar com os signos oferecidos. Conexões formadas pelo que restou (enquanto índice ou resquício conceitual) de cada obra dispersa nesse universo.

O jogo, de forma geral, possui a característica de amarrar essas diversas partes do universo que crio, possibilitando que haja uma fruição do interator por minhas produções artísticas, fazendo suas próprias conexões. Há ainda a possibilidade de compartilhar o trajeto e dialogar comigo enquanto criador sobre essas experiências por meio de um e-mail criado exclusivamente para o jogo, com a intenção de receber os depoimentos e impressões e vislumbrar narrativas dentro desse universo. Este recurso serve também para que eu possa enviar o arquivo do protótipo em PowerPoint para quem se interessar em jogar. Nas instruções do jogo, presentes no tabuleiro, há a orientação para que as pessoas anotem as ordens das cartas reveladas e enviem para o e-mail canibuiuoracle@gmail.com, para que então possamos dialogar, expandir as reflexões e experiências sobre cada caminho subjetivo, prezando mais pelas dúvidas que pelas certezas.

Por estabelecer diversas relações de interação, ligação e (re)significação entre elementos para que possa acontecer, o jogo funciona como um mediador de experiências e narrativas subjetivas imprevisíveis dentro desse universo. O jogador é situado no centro de sua jornada enquanto performer/personagem, numa relação de causa e efeito a partir de suas ações que dão direcionamentos narrativos a fragmentos que antes aparentavam estar dispersos.

 


TRANSCENDÊNCIAS E REEXISTÊNCIAS

Essas projeções articuladas por meio das cartas, do tabuleiro, da trilha sonora, dos QR codes, dos vídeos, das descrições e, sobretudo, das ressignificações existenciais e narrativas provocadas enquanto representação artística da obra, funcionam como formas de reexistir nos mundos (ordinário e extraordinário) e transmutar os padrões estabelecidos institucionalmente.

Pela fantasia da imaginação, nos tornamos mais próximos ao nosso interior ao estabelecer conexões subjetivas com o que achamos que somos/estamos em determinado momento, podendo repensar aspectos culturalmente institucionalizados. O formato digital ajuda a ampliar o alcance dessas relações e contatos, transcendendo e ressignificando tempos e espaços.

Como coloca Han (2019) especialmente para a cultura oriental, a humanidade não é uma “substância” fechada ou solidificada, mas sim uma “relação” que acontece pela modificação em essência pelos contatos, como na química. Segundo ele, “Categorias ocidentais como intersubjetividade ou interpessoalidade, que poderiam provocar apenas posteriormente uma relação entre as pessoas ou sujeitos, são estranhas ao pensamento do Extremo Oriente.” (p. 98-99).

Han explica que no ocidente há uma ideia de interioridade mais rígida que no mundo oriental, que é mais permeável e aberta. O pensador exemplifica dizendo que a própria palavra “cultura”, para alguns orientais, provém de conceitos absorvidos do ocidente. A palavra chinesa para “cultura” (wen-hua) conflui significados até contrastantes, como “padrão” e “mudança/transformação”. Para ele, “Antes de qualquer inter, os humanos são um entre” (HAN, 2019, p. 99).

Essa é a função essencial dessa obra enquanto oráculo: proporcionar um olhar mais voltado a questões interiores, mas, sobretudo, levantar reflexões sobre nossas subjetividades e relações com o diverso no mundo, pela fantasia desse universo. Essas relações com o autoconhecimento pelos elos entre as obras ajudam a formar esses “entres” e operam para o acesso aos “inter” colocados por Han. Na medida que o jogador se aprofunda nas obras, pode se conhecer melhor e transbordar os limites extraordinários do jogo, acessando questões até sobre o futuro, em suas vidas ordinárias.

Isso também ocorre com os sonhos, segundo Sidarta Ribeiro (2019):

Em contraste com a ampla maioria dos outros animais, temos enorme capacidade de simular futuros possíveis com base nas memórias do passado. Podemos realizar atividades motoras bastante complexas e precisas enquanto a mente devaneia sem limites nem amarras em imagens e situações de todo o tipo, em qualquer escala de tempo e espaço – exatamente como nos sonhos, mas com muito menos intensidade (RIBEIRO, 2019, p. 37).

 

Os processos oníricos mentais são, nesse sentido, parecidos com os processos da imaginação em vigília, o que proporcionou ao ser humano, durante eras, melhor adaptação e compreensão sobre as vicissitudes da existência. De um tempo pra cá, a atenção ao sonho vem cada vez mais diminuindo, o que, segundo o autor, é problemático, uma vez que interfere em nossa configuração de realidade e sobrevivência psíquica no presente.

O aspecto lúdico da psique é fundamental para nossa existência. Segundo Huizinga (2019, p. 6), “ao dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado da natureza.”  Como quando estamos sonhando, ao nos ambientar em um mundo fantástico, estamos submetidos às “regras” desse jogo e também às ilusões que são geradas de acordo com os elementos propostos, nos projetando para aquela realidade que, por vezes, é diferente da que estamos situados ordinariamente. Ao pensar nesses deslocamentos, pode-se observar que também o sistema que chamamos de “realidade ordinária” procede dessa forma, estabelecendo regimes de verdades que são absorvidos, normalizados e normatizados pela cultura institucionalizada, ou seja, jogamos e somos jogados culturalmente a todo momento.

Como vivemos no sistema neoliberal, que se baseia fundamentalmente no lucro, na exploração, na produtividade, no consumo e no mercado, nossa “realidade” ordinária funciona em razão disso. Somos, nesse tabuleiro social, peças cujo objetivo primordial é fazer a máquina neoliberal funcionar para gerar lucros. Segundo Han (2019):

Não o vasto espaço do trans, mas a proximidade da justaposição espaçotemporal é o que caracteriza a cultura atual. Não o multi ou o trans, mas o hiper (acumulação, conectividade e condensação) caracterizam a essência da globalização. (…) Em oposição a transculturalidade que, de modo evidente, esteve e operou em todas as épocas, em todas as culturas, a hiperculturalidade caracteriza a cultura de hoje (HAN, 2019, p. 104-105).

 

Imersos na práxis de apropriação consumista de nossas relações, pagamos e somos produtos ao mesmo tempo simplesmente por existir. Hipnotizados pelas time lines das redes e expostos ao controle dos dados, já não há mais uma distinção sólida sobre o “estar” ou “não-estar” exposto e vigiado na internet. O controle do ciberespaço está em todo lugar e permeia nossas vidas cotidianas.

A ideia de “consumismo” é atrelada a ter mais do que se necessita, em um processo que também gera uma cultura atrelada à hipercompetição, induzindo demonstrações de poder na sociedade. O consumo adentra camadas psicoemocionais dos indivíduos, em busca de uma felicidade que nunca é alcançada ou saciada já que está sempre deslocada do presente. Assim, há no núcleo existencial do sistema vigente uma “ideologia do consumo” como um estilo de vida disseminado no qual não se vendem apenas produtos, mas, de fato, valores que atacam os desejos. Até mesmo os valores que podem ser contra o sistema, que muitas vezes surgem de maneira insurgente, são cooptados em prol do consumo.

A sociedade de consumo tende, cada vez mais, a seguir se transformando pelo fluxo informacional ditado por conglomerados que operam o mundo. Estamos constantemente conectados e multiplicados no tempo e espaço hipercultural, mesmo em oposição ao sistema. Replicados em “zeros” e “uns” que contribuem para alguém lucrar de alguma forma. Porém, à luz de Espinoza (remetido por Han), os bons encontros, as relações, o lúdico, as narrativas, entre outros, são fatores que ainda nos despertam a potência do afeto, de sermos afetados, de agir, de existir, de nos formar, de sermos humanos e refletir sobre o que nos cerca. “As coisas das quais a gente se apropria, com as quais estamos rodeados, é que fazem a diferença do conteúdo do self. (...) A crítica do consumo pressupõe um interior profundo que valeria proteger da superabundância de coisas exteriores.” (HAN, 2019, p. 109)

Logo, como diz Janet H. Murray (2003), os deslocamentos fantasiosos a realidades alternativas nos  permitem e provocam distanciamentos do sistema quantificado do mercado, formando conexões com aspectos qualitativos da vida. Tais relações possibilitam um equilíbrio frente as padronizações institucionalizadas de hiperprodutividade:

Representar, jogar e contar histórias estão intimamente ligados. Tal como a linguagem, são componentes ancestrais e definidores de nossa humanidade. São também recursos para as tarefas culturais que enfrentamos atualmente, especialmente para a de viver numa comunidade global que traga compreensão e respeito mútuo através de nossas múltiplas fronteiras culturais (MURRAY, 2003, p. 11).

 

No entanto, o sistema opera também sobre as artes narrativas e utilizam seus recursos de maneira poderosa. Por isso, penso nesse jogo, Cani Buiu Oracle, e na constituição transmidiática do universo como um todo, não com intenções meramente mercadológicas, mas como uma forma de acessar e transmutar questões de forma visceral. Pensar sobre as cooptações pelas próprias narrativas, obras e dispersões. Ao reconhecer, lançar luz e integrar essas questões à ponderação reflexiva, tenho maior clareza sobre elas. Pela fragmentação transmidiática desse universo, tento representar aspectos de ordenamento da sociedade atual, espalhada, diversa e expandida, porém também submetida ao controle.

 


MEMÓRIA, DESLOCAMENTOS E FRAGMENTAÇÕES

No jogo, as cartas distribuídas no tabuleiro, enquanto ocultas, trazem (no verso) uma imagem feita por Edgar Franco (a.k.a. Ciberpajé) de representação do ser fantástico Cão Breu[2], como alusão à invocação dessa criatura crucial em meu universo, direcionando o olhar às sombras junguianas pessoais e sociais do interator. Ao abrir/revelar as cartas, ele se depara com QR codes que, ao olharmos pra eles, não conseguimos decifrá-los cognitivamente de maneira espontânea ou instantânea, uma vez que são códigos digitais que trazem links indexados que devem ser lidos por máquinas. Parecem-nos, enquanto imagem, formas padronizadas abstratas. Estabelecidas, em sua origem, para serem lidas utilizando determinada ferramenta tecnológica (nesse caso a câmera do smartphone) que, ao processar a leitura, já indicará os endereços eletrônicos a serem acessados.

Tento representar esse pensamento de maneira artística, visando as relações entre humano e máquina. Penso em transcendências pelas tecnologias, “que amplificam nossos sentidos e nossa capacidade de processar informações” (DOMINGUES, 1997, p. 15), como pontes para acessar os QR codes, ou seja, o dispositivo tecnológico atua como uma extensão do corpo humano, um portal transdimensional que abrirá as revelações que conduzirão o jogo da memória/oráculo do Cão Breu (Cani Buiu). As imagens não são processadas simplesmente pelo olhar, mas pela câmera que não vê apenas a imagem “externa”, mas como dados codificados “internamente” que são então revelados pela máquina, possibilitando o acesso aos universos ali ocultos, distintos de significação mesmo parecendo-se iguais a olho nu.  

A metamorfose ciborgue inerente a esses processos de por reengenharias de realidade e diálogos entre humano-máquina na decodificação dos QR codes, utiliza-se da aparente padronização para adentrar universos alternativos de representação. A princípio, para a percepção da imagem, é preciso a tecnologia para poder transmutar o que se apresenta aos sentidos e acessar as significações contidas. Para isso necessita-se de um prolongamento ótico cognitivo tecnológico para que a experiência se complete. Vamos imaginar que, num futuro hipotético, as tecnologias como as conhecemos hoje não funcionem mais para decodificar tais imagens. Nesse caso, perde-se a expansão conceitual de significação primordialmente pensada para a obra e abre-se um resquício de representação que não se completa funcionalmente, como hoje nos parecem alguns símbolos antigos indecifrados, porém que permanece como elemento artístico-histórico-cultural.

Essas imagens de interface dos QR codes funcionam como caminhos que apontam para outras imagens, como uma espécie de “mapa do tesouro”, de comunicação poética e narrativa, codificado mekhanropofágicamente. Assim, “as interfaces possibilitam a circulação de informações que podem ser trocadas, negociadas, fazendo com que a arte deixe de ser um produto de mera expressão do artista para se constituir num evento comunicacional” (DOMINGUES, 1997, p. 20).

Há uma relação direta dos procedimentos artísticos com a essência humana de comunicar ideias e transformar as experiências de maneiras diversas que transbordam as tradições instituídas. A arte geralmente busca romper com os padrões ou normatizações estipuladas e propor novas formas de experienciar a vida. Como um mago, o artista opera signos de maneira intencional nos contextos culturais que participa. Por meio de formas, contrastes, cores, luzes, sombras, texturas, imbuí nessas operações a comunicação de ideias, conceitos, revelações, sigilos, transmutações, ressignificações e caminhos de sentir e pensar sobre a existência. A arte é também ligada aos contextos, e, por isso, crio pelos fluxos eletrônicos e tecnologias que nos são acessíveis hoje variantes de ressignificação de processos e relações que ocorrem também conforme as próprias tecnologias se modificam, bem como as relações sociais que vivo.

Há implícito um questionamento estético sobre os controles e deslocamentos da memória por aberturas de portais para a imaginação na operacionalização e apresentação das cartas pelas figuras do “Cão Breu sombrio” (quando a carta ainda está “fechada”) e do Cão Breu esfumaçado (em alusão ao espelho de obsidiana e seus reflexos transtemporais, quando o par da carta é encontrado e revelado). Também trago um olhar sobre a hiperdependência tecnológica para os armazenamentos de dados, transferindo para as redes o poder sobre a tangibilidade metamórfica das narrativas que construímos durante a vida.

Isso dialoga com o pensamento de Han sobre o “dataísmo” e a perda de liberdade que estamos condicionados no mundo atual. Os dados armazenados em nossas memórias orgânicas (cerebrais) estão sujeitos ao esquecimento, à remodelagens e reestruturações narrativas que são fundamentais à nossa saúde mental. Com a transferência das memórias para as máquinas, imortalizam-se os fatos impedindo-os de ser repensados, causando dificuldades de autotransmutação e evolução, uma vez que o ato de esquecer determinadas coisas é fundamental para o ser humano ressignificar o passado e reviver o presente. A memória humana vista, freudianamente, como um organismo vivo, enquanto a memória digital se configura como o oposto monstruoso dessa vida:

A memória humana é uma narração, uma narrativa para a qual o esquecimento é essencial. A memória digital, por outro lado, é uma adição e acumulação sem intervalos. Os dados armazenados são contáveis, não narráveis. (...) A memória (humana) é um processo dinâmico e vivo em que diferentes períodos de tempo interferem e se influenciam mutuamente. Está sujeita a transcrições e reagrupamentos constantes (...) Assim, não existe o passado que se mantém igual e é recuperável da mesma forma. A memória digital se constitui de momentos presentes indiferentes ou, por assim dizer, de momentos zumbi. (...) A temporalidade do digital é a dos mortos-vivos (HAN, 2018a, p. 92-93).

 

O escape dessa relação monstruosa se dá ao lançar luz sobre as sombras que assombram e, ao integrá-las sem negação, observar nesses processos aspectos típicos da subjetividade que nos tornam únicos. Esses contatos aparecem na obra por meio de reflexões sobre a leitura das cartas do jogo/oráculo.

 


O ORÁCULO DO CÃO BREU

Os oráculos operam em diversas sociedades (extintas ou não) como um espelho interior de onde eclode elementos e questões essenciais do e ao si-mesmo. Essas relações trazem uma áurea transcendental para tais artefatos. A transcendência, que pode ser aproximada das ideias ascottianas de Realidade Vegetal, está presente no jogo Cani Buiu Oracle em sua forma fragmentada de apresentação e leitura.

O funcionamento básico do jogo acontece da seguinte maneira: 1) o jogador escolhe uma carta e a vira; 2) o jogador vira outra carta e tenta formar um par a partir das leituras dos QR codes. Ao se formarem pares, ou seja, ao ser lido pelo dispositivo o mesmo QR code em duas diferentes cartas, o jogador acessa sua revelação contida no link revelado; 3) Os links contém vídeos que, por si só, já dialogarão com as subjetividades do jogador mas, além disso, nas descrições dos vídeos, por escrito, existem textos que funcionam como expansões de significação relacionadas às cartas do oráculo.

O jogo contém 13 cartas, formando 26 pares de revelação, sendo 12 pares de códigos idênticos e 1 conceitual, formado por links distintos, mas que trazem o mesmo conceito de significação (Dominar/Resignar) relacionado por mim, enquanto criador, e explicitados nas descrições dos vídeos “Genocida”[3] e “O Messias de Rosemary”[4]. A escolha poética de manter esses dois vídeos como pares, mesmo sendo códigos/links diferentes se deu em alusão ao contexto obscuro que passamos atualmente no Brasil, com mais de 666 mil mortos pela pandemia. Uma maneira de  protestar contra a situação trágica que passamos potencializada pela necropolítica instituída.

Os 13 pares representados se relacionam com o arcano 13 do tarô (a “Morte”), que indica ideias de renascimento, transformação e ciclos, como a luz que pode vir das sombras atuais. Porém, como já dito, apesar de 13 pares, são 14 códigos/links (pois há um par conceitual). O número 14 traz, ainda na relação com o tarô, a ideia da “Temperança”, a busca do equilíbrio e o bom senso a partir do autoconhecimento. Representa também as conexões entre o sol e a lua, entre o masculino e o feminino, entre o superior transcendental e o inferior orgânico. Tais relações de contraste e complementação me ajudaram a pensar o conceito do jogo (e do meu universo de forma geral) acessando as nuances que transcendem os maniqueísmos binários do “0” e “1” digital.

Ao fundo do tabuleiro há uma imagem que intitulo como “Paisagem MekHanTrópica”, oriunda de uma foto feita da janela do meu apartamento que foi posteriormente submetida a interferências da Inteligência Artificial Deep Dream Generator, fundindo a capa do álbum musical MekHanTropia à fotografia. Esse processo tem como intenção representar as ilusões tratadas no universo ficcional.

Segundo Han, a janela tem duas funções: “É primeiramente uma abertura ao exterior. Mas também ao mesmo tempo protege do mundo, como uma tela. Como uma espécie de janela, a tela opera não apenas revelando, mas também protegendo” (HAN, 2019, p. 86). A imagem “de lá de fora” (fotografia da cidade) feita “de dentro” da janela processado em um “lugar nenhum” desfactualizado (rede neural/IA) a partir de uma imagem que também representa sons (a capa do álbum musical MekHanTropia). Assim, as ilusões postas pelo sistema se dão por confluências de ideias condensadas a partir dos processos que contribuem para gerar representação poética de ambientação contextual e conceitual do jogo, em uma ilusão de segurança e proteção pelo tabuleiro.

Narrativamente, o jogo estabelece relações com forças psíquicas ocultas de MekHanTropia e traz visões, sugestões e experiências transcendentais aos personagens. Tais fenômenos os fazem duvidar da realidade ordinária e, por isso, tornam-se alvos do sistema. Esse oráculo atua, na narrativa, como um artefato de resistência, para que possam compreender suas histórias, acessando memórias por fragmentos oníricos que ainda estão dispersos no dataísmo de MekHanTropia. Assim, cada vez que se joga Cani Buiu Oracle, além de olhar suas próprias sombras refletidas nesse universo, também se dá vida a personagens e fragmentos de suas histórias, podendo dar sentidos de resistência a eles.

Busquei nos 22 Arcanos Maiores do Tarô o ponto de partida para as revelações das cartas codificadas pelos QR Codes e tentei associar as ações relacionadas aos Arcanos com os vídeos, condensando algumas delas em uma só revelação. Tais elementos são absorvidos em minha obra a partir de sigilos mágickos, em uma relação fundamental de construção de significação mística /poética atrelada ao universo ficcional.

Os Arcanos do Tarô e as indicações de ação “energética” de revelação que estabeleci são:

O Louco (Revolucionar); O Mago (Aspirar); A Sacerdotisa (Analisar); A Imperatriz (Desenvolver); O Imperador (Controlar); O Sacerdote (Disciplinar); O Enamorado (Escolher); O Carro (Direcionar); A Justiça (Ajustar); O Eremita (Pesquisar); A Roda da Fortuna (Alterar); A Força (Dominar); O Pendurado (Resignar); A Morte (Modificar); A Temperança (Reconciliar); O Diabo (Desejar); A Torre (Dissolver); A Estrela (Harmonizar); A Lua (Expandir); O Sol (Triunfar); O Julgamento (Transcender); O Mundo (Progredir). Extraí tais relações da leitura do tarô realizada por minha mãe durante o processo de criação do jogo. Busquei adaptar experimentalmente tais significações dela às minhas intenções poéticas em cada vídeo produzido até então no meu universo, sem qualquer ordem numérica ou narrativa para essa adaptação. Assim, o verbo “Revolucionar”, por exemplo, relacionei à descrição do videoclipe da música “Tentando Explicar o óbvio”, uma vez que tanto o vídeo quanto a música versam sobre resistência e enfrentamento ao sistema pela iluminação do autoconhecimento e da subjetividade/unicidade em oposição à padronizações institucionalizadas, e assim por diante.

Os Diários de Quarentena, – que surgem em todas as descrições dos vídeos relacionados ao jogo e em outras ocasiões como diálogos, músicas, minicontos, etc. espalhados por todo o universo de MekHanTropia –, são reflexões feitas pelos personagens dentro da narrativa. Esses diários são resquícios de sonhos, visões, memórias, diálogos, experiências ou até mesmo devaneios da imaginação deles. A ideia é que eles sirvam para plantar dúvidas sobre a lucidez dos personagens e, sobretudo, questionar a realidade tanto do universo ficcional quanto a nossa própria, validada por nós de maneira ordinária.

Por fim, a trilha sonora do jogo é a música instrumental, composta e produzida por mim, intitulada “Mundo T(r)ela (Deep Blue Animus Shine)”, presente no EP Ecos Oníricos[5], que traz hibridismos de música eletrônica com violão e vocalizações meditativas. Essa faixa sonora foi escolhida para firmar a relação existente entre os dois processos que deram concomitantemente: a criação do jogo Cani Buiu Oracle e a criação do EP Ecos Oníricos, ambos situados no universo ficcional de MekHanTropia.

O EP Ecos Oníricos apresenta seis músicas autorais gravadas e editadas por mim pelo celular. O eu-lírico da narrativa é o personagem Valdez, que busca alternativas de resistência ao sistema de MekHanTropia por meio dos sonhos, reflexões e conexões colaborativas transbinárias e transdimensionais, atuando no autoconhecimento e escapando de padronizações maniqueístas instituídas. Há também uma narrativa paralela transmidiática escondida no EP: junto com as letras das músicas na plataforma BandCamp, há um miniconto mekhantrópico dividido em seis partes. Um sonho dentro do sonho ali a ser experimentado e que dialoga com os já citados Diários de Quarentena de Valdez. De forma geral, Ecos Oníricos tem como inspiração sonhos que tive durante o período pandêmico, tecendo alusão a narrativas oníricas e fantásticas, reflexões existenciais e contraculturais, devaneios pós-humanos transcendentais e experimentações sobre realidades e dimensões colaborativas anti-mercadológicas que se interseccionam e materializam-se artisticamente pela obra. O processo criativo iniciou-se de lembranças (ao acordar) e interpretações subjetivas sobre sonhos que tive, além da ideia de desconexão narrativa e conexão conceitual que os sonhos estabelecem com os repertórios do sonhador (assim como o conceito do jogo Cani Buiu Oracle). Esses diálogos estabelecidos entre sonhos, arte, ciência, tecnologias disponíveis ao meu alcance, o contexto de pandemia, as parcerias e os múltiplos contatos da obra expandem a experiência onírica original a novas dimensões conceituais que ecoam de inconscientes que se cruzam, materializando artisticamente tais fenômenos transcendentais.

 


Referências

ASCOTT, Roy. Existe amor no abraço telemático? In: DOMINGUES, Diana. Arte, Ciência e Tecnologia – Passado, Presente e Desafios. São Paulo: Editora Unesp, 2009. p. 305-318.

DOMINGUES, Diana (org.). A arte no século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Trad. Maurício Liesen. 1ª ed. Belo Horizonte: Âyiné, 2018.

HAN, Byung-Chul. Hiperculturalidade: Cultura e Globalização. Petrópolis: Vozes, 2019.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. 9ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2019.

JUNG, Carl Gustav. Sobre sentimentos e a sombra: sessões de perguntas de Winterthur. 2ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 2015.

MURRAY, Janet H. Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo: Itaú Cultural: Editora UNESP, 2003.

RIBEIRO, Sidarta. O oráculo da noite: a história e a ciência do sonho. 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.



[1] A.k.a. Fredé CF. Artista multimídia. Doutor em Arte e Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás. Membro dos grupos de pesquisa “Representação da Alteridade no Cinema, na Animação e Novas Mídias”, coordenado pela profa. Dra. Rosa Berardo; e “Criação e Ciberarte (Cria_Ciber)”, coordenado pelo prof. Dr. Edgar Franco. E-mail: fredcfelipe@gmail.com .

[2] “Cão Breu” remete (em meu universo), etimologicamente, ao “demônio” (Cão) e à “sombra” (Breu). Circunscrita oralmente ao ambiente interiorano brasileiro, a lenda tematiza o encontro súbito com um ser fantástico cuja forma é um cão negro de olhos flamejantes que instiga um olhar às sombras de quem o fita, podendo causar mau agouro. Ver: <https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/777/o/A_lenda_do_C%C3%A3o_Breu_-_Frederico_Carvalho_Felipe_455.pdf> Acesso em: <25/06/2022>.

[3]Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2nB5uswwdYQ&t=3s Acesso em 18/10/2021.

[4]Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=P2p318Ae2Tc&t=7s Acesso em 18/10/2021.

[5]Disponível em: https://fredefoak.bandcamp.com/album/ecos-on-ricos-ep Acesso em: 19/10/2021.


[RESENHA] “'Piranha Teeth' e a música pós-humana brasileira (MPB)", por Amante da Heresia

 


“Piranha Teeth” e a música pós-humana brasileira (MPB)

Por Amante da Heresia (a.k.a. Léo Pimentel Souto)*

em uma zona cinza de MekHanTropia, há uma curva num vortex de saci onde as leis da lógica são meras espectadoras. nela habita um certo alQUEERmista peculiar que rege uma harmonia cósmica intrinsecamente ligada a um ritual insólito: para ouvir a melodia transcendental das suas estrelas é preciso que deixemos que nossas orelhas sejam mordidas por uma específica piranha biomecânica gigeriana de estimação.

pois bem, eis minhas orelhas pra jogo! nhac! nhac! nhac! nhac! nhac! nhac! nhac! rapá du céu! que dentada afiada essa da porra da moléstia! dentes feito uma quimera entre pétalas de rosa e agulhas de cristal! pronto! hacking sangrento realizado! sim! agora ouço! conexão direta com as vibrações cósmicas! sinfonia de dor e êxtase! amor e protesto! eros, suor e fúria!

Acesse o EP "Piranha Teeth" de Fredé CF pelo link: https://fredecf.bandcamp.com/ 

os dentes da piranha dançavam em minhas orelhas, como agulhas de um toca-discos celestial antiMecHanTrópico! esses dentes-navalhas-xenomórficas deixaram rastros de arco-íris na minha carne ensanguentada que rasga.

a experiência vem em sete talhos. fantasmagoria sensorial de minha carne crua, um tanto indigesta. a dor da mordida de cada um dos sete rasgos sonoros, se dissolve na sinfonia cósmica de violão, voz, letra e sons eletrônicos que inundaram minha mente.

cada dilaceração é uma viagem pelos confins do universo frederiano de suas constelações sonoras. eita alQUEERmista danado!

agora exibo, orgulhosamente, estas singelas cicatrizes em forma de microconto, tatuadas pelas mandíbulas etéreas de Piranha Teeth de Fredé CF, como um logotipo de banda de black metal, cujo estripamento sugerem a sigla MPB, música pós-humana brasileira.

 Acesse o EP "Piranha Teeth" de Fredé CF clicando no link: https://fredecf.bandcamp.com/ 



* O Amante da Heresia (a.k.a. Léo Pimentel Souto) é artista transmídia e pós-doutorando em Arte e Cultura Visual pela UFG. Integra o Grupo de Pesquisa CRIA_CIBER (FAV/UFG).

pós-créditos: "ainda bem que nesse rio não sonhamos com candirus elétricos! porque seria o maior pesadelo! ufa!" (Amante da Heresia).