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domingo, abril 21, 2019

O inverno é agora: Game of Thrones e as metáforas narrativas



A obra audiovisual seriada Game of Thrones, retornou no dia 14 de abril, após dois anos, com o primeiro episódio de sua última temporada: a oitava da série. Neste primeiro episódio, exibido pelo canal HBO com o sinal aberto em vários lugares do mundo, alguns pontos destoaram dos elementos que caracterizaram a série enquanto trama e narrativa nas sete temporadas anteriores, mas que, devido à eminência do fechamento do universo ficcional, pode-se justificar em relação à história como um todo, trazendo algumas viradas dos personagens que seguem se digladiando em direção a um “buraco negro” desconhecido.
A princípio, é importante destacar algumas definições em relação às nomenclaturas no universo audiovisual. Neste sentido, temos a história como a sequência de eventos principais descritos de forma abrangente, sem detalhes específicos. A história de um filme geralmente focaliza nos problemas e objetivos dos protagonistas, nos conflitos que são enfrentados por eles. Quando descrevemos um filme para amigos, por exemplo, contamos a história, as motivações e empecilhos na vida dos personagens, como o filme acaba, ou seja, a estrutura básica.
Já o argumento é tido como uma motivação inicial no processo de construção de uma história. Podendo ser uma problematização, uma vontade, uma pergunta, um tema, etc. No caso da série em questão, a história parte do argumento de busca pelo poder e domínio do trono de ferro por personagens que se julgam merecedores dele. Porém, em meio a uma atmosfera de disputas políticas e ambientação medieval, existe ali um fator antagonista que vai além das batalhas entre os humanos pelo referido trono: o sobrenatural. Assim, no primeiro episódio da série, lá na longínqua primeira temporada, é introduzida, em sua cena inicial, a noção de que o mundo ficcional que ali será exposto não se configura exatamente como o nosso. A realidade pela qual os personagens transitam na série trará seres que estão além de nossas experiências cotidianas, como mortos-vivos, gigantes, dragões e corvos de três olhos. Em outras palavras, a série não é histórica e nem traz uma pegada mimética documental, muito pelo contrário: o imaginário e a fantasia permitem-nos extravasar e isso já é colocado no início para podermos trabalhar assim as nossas expectativas. Mas, de qualquer forma, fica a reflexão: não seriam, mesmo, as ficções formas de produção da realidade?
Um passo a frente na análise e já nos aproximamos das definições de trama. Essa ideia aparece em alusão às tramas de um tecido, um conjunto de fios que se cruzam e assim geram determinadas ações em um filme (ou série, como em Game of Thrones). Ou seja, podemos visualizar a trama como a sucessão de acontecimentos que constituem a ação de determinada obra narrativa. A trama aqui parte do conflito que é estabelecido a partir de um golpe que foi instituído a um antigo rei louco e perverso que foi assassinado e, durante todo o percurso na obra, os personagens agem motivados por essa questão, com diferentes forças e pontos de vista sobre temas pertinentes como justiça, honra, poder, família, espiritualidade, confiança, entre outros. A construção de cada perfil psicológico de personagem nos aproxima e nos afasta deles (enquanto identificação como espectador), por serem demasiado humanos em suas forças e fraquezas. Cada personagem, com sua própria linha do tempo de percurso na narrativa (seja de evolução ou decadência de caráter), cruza com outros personagens em uma trama que se estabelece por meio dos temas tratados pela série.
Porém, o que mais se destaca em Game of Thrones e, talvez, o que garanta o grande sucesso da obra é a narrativa, ou seja, a forma como é contada a história audiovisualmente, por meio das escolhas feitas pelos autores em relação aos planos e sequências, compostas por enquadramentos, movimentos de câmera, sons, ruídos, metáforas visuais e sonoras, entre outros elementos próprios desta linguagem. Então, sendo a história relacionada a “O que” acontece, e a trama ligada a “Por que” acontecem os conflitos, a narrativa está aqui diretamente associada ao “Como” contar a história, e é nisso que a série surpreende: no estilo.
Estamos habituados a algumas diferentes maneiras de contar histórias como: a narração linear, aquela que conta os fatos de acordo com sua ordem cronológica, “de A a Z”, sem grandes interferências ou reviravoltas; narrativas invertidas, contadas de trás pra frente ou por flashbacks e elipses; narrativas em paralelo, com episódios que são intercalados sucessivamente; narrativas por diferentes perspectivas, estabelecendo pontos de ligação entre as trajetórias dos diversos personagens, conhecidas como “contraponto dramático”. Pessoalmente, independente da escolha, me encantam as narrativas que subvertem o habitual e propõem maneiras alternativas de contar histórias e experimentar diferentes possibilidades de leitura, nos tirando de alguma forma do lugar comum.
Durante toda a série, a orquestração dos personagens, ou seja, como os personagens veem os conflitos e se relacionam com eles e entre eles, é pensada de forma a colocar em xeque alguns aspectos que posicionam o espectador em um universo maniqueísta. Porém, os autores fazem que tudo isso esteja de alguma forma contrastado e conectado, entrelaçado, como em uma trama de tecido, de maneira a alcançar um destino comum, como o centro de um espiral ou um redemoinho, nos surpreendendo com rompimentos e reviravoltas que talvez não estivéssemos prevendo ou atentos o suficiente para “ler” nas entrelinhas audiovisuais, mas que desembocam para um ponto de fuga comum narrativo. Essa arquitetura conceitual da série nos força, de certa forma, a visualizar tudo como sua abertura já sugere: em “perspectiva”, em “plano geral”, por cima, visando o todo a partir do específico e o específico a partir do geral.
A série trabalha muito bem as metáforas audiovisuais que trazem informações valiosas sobre os desdobramentos que o universo ficcional pode tomar. Além disso, os personagens atuam em benefício da história de forma geral e não a partir de objetivos específicos na trama; por isso mesmo aprendemos a ser desapegados já que muitos morreram ao longo destes anos.  
A metáfora principal da série vem do contraste entre “fogo” e “gelo” e permeia os diversos níveis da narrativa, desde elementos relacionados às personalidades e emoções dos personagens, a características de cenários, iluminação, fotografia, constituição de personagens (humanos e sobrenaturais), símbolos e nomes das famílias/clãs, entre outros aspectos formais que compõem a obra. Todo universo proposto se conceitua e é conduzido nesta dicotomia entre o “quente” e o “frio”, que por sinal sempre é anunciada porvir pela célebre frase “the winter is coming”.
Neste início da última temporada, todas as pontas parecem começar a se amarrar, configurando um fechamento que já vem sendo indicado por meio de sentidos lapidados em cenas anteriores, tidas na ocasião como aleatórias ou herméticas. Um exemplo disso é a visão que teve a personagem Daenerys Targaryen, na segunda temporada, com o trono de ferro envolto à neve, o que pode indicar metaforicamente, uma possível relação dela com o sobrenatural e com os White Walkers, ou que ela se transformará na grande vilã da série e terá seu coração congelado por não aceitar o fato de Jon Snow (agora Aegon Targaryen) ser o verdadeiro herdeiro do trono.
A propósito, a história de Jon Snow também é um fator a se atentar e refletir com cuidado. Alguns elementos transformaram nossa percepção em relação ao personagem durante o decorrer da série, quando foram reveladas, por meio de visões e flashbacks, sua origem marcada pela movimentação do fogo ao gelo e ao que tudo indica de volta ao fogo como Targaryen. A princípio bastardo e excluído, Jon questiona por sua própria existência o espectador, colocando dúvidas sobre as certezas em relação às verdades construídas acerca dos personagens. Por ser de fato um Targaryen legítimo e herdeiro do trono, mas ter sido criado como bastardo pelos Stark, o personagem teve proteção por sua vida enquanto criança e também adquiriu a força moral típica deste clã, o que, no entanto, faltava aos Targaryen, elevando assim o personagem à posição de “herói” de toda a história.
No primeiro episódio da última temporada, algumas pistas também foram deixadas no que tange à confiança entre Daenerys e Jon, que, por sinal, protagonizaram a cena mais fora da curva até o momento. Em um rompante de ternura destoante da crueza que a série traz, o voo cavalgante nos dragões e o beijo caliente na cachoeira congelada remete a cenas clássicas de comédias românticas, entretanto, enfatiza a direção que está tomando a relação entre os dois e crava o conceito dicotômico entre “gelo” e “fogo” que permeia a série.  
Com um olhar um pouco mais além, percebemos, ainda no episódio, desconfianças por parte das irmãs Stark, além do diálogo de Samwell Tarly tanto com Daenerys quanto com Jon, orientado por Bran, como em uma condução narrativa. Outro ponto alto e impactante do episódio inaugural desta última temporada, no que tange à significação, é o retorno do símbolo em espiral agora formado por membros humanos dilacerados em chamas e um garotinho no centro, o que remete novamente à narrativa e suas conexões conceituais e metafóricas.
Em entrevista ao New York Post, Dave Hill, escritor de Game of Thrones, comentou acerca do significado deste que é um dos símbolos mais importantes da série e que os White Walkers costumam desenhar nos lugares que passam: “Como vimos com o Bran e o Corvo de Três Olhos, o símbolo em espiral era sagrado para os Filhos da Floresta, que criaram o Rei da Noite sacrificando um homem capturado, em uma espiral de pedras. Então, o Rei da Noite adotou o símbolo em uma espécie de blasfêmia, como Satã com a cruz invertida”. A forma em espiral já apareceu em vários momentos ao longo da série, ganhando grande repercussão quando Bran Stark testemunhou em uma de suas visões a criação do Rei da Noite pelos Filhos da Floresta, na sexta temporada. As metáforas utilizadas no audiovisual, de maneira geral, favorecem a imersão do espectador por meio de relações semióticas e, muitas vezes, contribuem para o estabelecimento de conceitos importantes na obra por meio de símbolos sonoros e imagéticos. 
Como diria o jornalista e escritor Arthur Koestler “O próprio fato de que alguma coisa me lembre de outra pode se transformar numa potente fonte de emoções.” Desde os teóricos russos do cinema, como Kuleshov, Eisenstein e Pudovkin, sabemos que o sentido no filme é formado a partir a justaposição sequencial de planos, de acordo com a intenção do narrador (cinegrafista-diretor-montador) em relação à percepção do espectador. A montagem cinematográfica é tida assim como uma das principais geradoras de sentido no filme, por meio da organização dos planos. As metáforas vêm à tona nesse movimento em diálogo com a iluminação, os cenários, a maquiagem, o enquadramento, as atuações, os sons, as elipses e raccords, entre outros elementos de linguagem que contribuem para dar novas significações às cenas e aos personagens. Assim, o universo ficcional se expande e se mostra mais interessante, dilatando nossa imaginação em busca de conexões que, a priori, não se estabeleceriam e abrindo lacunas no imaginário do espectador.
Teorias sobre o fim da série à parte, o que torna, a meu ver, a obra genial é a excelência na utilização da linguagem audiovisual. Enquadramentos de tirar o fôlego, trilha sonora e sonoplastia emocionante, mise-en-scéne impecável, produção estratosférica. Tudo isso articulado com personagens marcantes e muita fantasia e imaginação. Os personagens aprendem pequenas lições no decorrer de toda a obra e, assim, se transformam progressivamente, tornando-se muitas vezes irreconhecíveis, porém sem perder de vista o “olho do furacão”, o “buraco negro”, o “centro do redemoinho”, da espiral a que todos são conduzidos e que não temos muito claro aonde dará, pois transporta a novas possibilidades de realidade naquele universo e consequências do percurso traçado até então na guerra constante entre o frio e o calor que transfiguram o mundo. Mas uma coisa é certa: o inverno enfim chegou!
Por isso, algumas reflexões são imperativas após oito temporadas: Será que todos irão morrer? Será que Jon irá mais uma vez renunciar ao poder? Será que Daenerys aceitará a ideia de que Jon é seu parente e, mais do que isso, o herdeiro direto do trono? Qual a relação entre Bran Stark e o Rei da Noite? Será que Cersei Lannister irá deixar de ser tão perversa e se transformar em aliada contra os White Walkers? Será que o centro do redemoinho é o Rei da Noite? Em breve saberemos todo o desfecho para essas questões e, apesar do tom melodramático do primeiro episódio da última temporada, a série segue sendo uma das obras mais grandiosas já produzidas audiovisualmente. A muralha tão simbólica na série foi rompida. As fronteiras da civilização estão cada vez mais fluidas e diluídas em dúvidas que em certezas. A única certeza que temos é de que Jon Snow continua não sabendo de nada e por isso talvez nos identifiquemos tanto com ele. Vivemos na ilusão ingênua de parecer entender o mundo e, com isso, acreditamos ser aquele que sabe de tudo nessa era de pós-verdades absolutas. Creio que o equilíbrio está nessa busca interna, em nós mesmos, por meio de imagens e sons que estão à escuta de realidades complexas, não à procura de sentidos simples. De dentro pra fora e com pontes ao invés de muros.


*Texto de Frederico Carvalho Felipe (Mestre em Arte e Cultura Visual. Especialista em Cinema. Bacharel em Relações Internacionais. Professor de fotografia, cinema, produção audiovisual, semiótica, linguagem visual e filosofia. Baixista nas horas vagas. E-mail: fredcfelipe@hotmail.com).

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