A
obra audiovisual seriada Game of Thrones,
retornou no dia 14 de abril, após dois anos, com o primeiro episódio de sua
última temporada: a oitava da série. Neste primeiro episódio, exibido pelo
canal HBO com o sinal aberto em vários lugares do mundo, alguns pontos
destoaram dos elementos que caracterizaram a série enquanto trama e narrativa nas sete temporadas anteriores, mas que, devido à
eminência do fechamento do universo ficcional, pode-se justificar em relação à história como um todo, trazendo algumas
viradas dos personagens que seguem se digladiando em direção a um “buraco
negro” desconhecido.
A
princípio, é importante destacar algumas definições em relação às nomenclaturas
no universo audiovisual. Neste sentido, temos a história como a sequência de eventos principais descritos de forma
abrangente, sem detalhes específicos. A história de um filme geralmente focaliza
nos problemas e objetivos dos protagonistas, nos conflitos que são
enfrentados por eles. Quando descrevemos um filme para amigos, por exemplo,
contamos a história, as motivações e empecilhos na vida dos personagens, como o
filme acaba, ou seja, a estrutura básica.
Já
o argumento é tido como uma motivação
inicial no processo de construção de uma história. Podendo ser uma
problematização, uma vontade, uma pergunta, um tema, etc. No caso da série em
questão, a história parte do argumento
de busca pelo poder e domínio do trono de ferro por personagens que se julgam merecedores
dele. Porém, em meio a uma atmosfera de disputas políticas e ambientação
medieval, existe ali um fator antagonista que vai além das batalhas entre os
humanos pelo referido trono: o sobrenatural. Assim, no primeiro episódio da
série, lá na longínqua primeira temporada, é introduzida, em sua cena inicial,
a noção de que o mundo ficcional que ali será exposto não se configura
exatamente como o nosso. A realidade pela qual os personagens transitam na
série trará seres que estão além de nossas experiências cotidianas, como
mortos-vivos, gigantes, dragões e corvos de três olhos. Em outras palavras, a
série não é histórica e nem traz uma pegada mimética documental, muito pelo contrário: o
imaginário e a fantasia permitem-nos extravasar e isso já é colocado no início
para podermos trabalhar assim as nossas expectativas. Mas, de qualquer forma,
fica a reflexão: não seriam, mesmo, as ficções formas de produção da
realidade?
Um
passo a frente na análise e já nos aproximamos das definições de trama. Essa ideia aparece em alusão às
tramas de um tecido, um conjunto de fios que se cruzam e assim geram determinadas
ações em um filme (ou série, como em Game
of Thrones). Ou seja, podemos visualizar a trama como a sucessão de
acontecimentos que constituem a ação de determinada obra narrativa. A
trama aqui parte do conflito que é estabelecido a partir de um golpe que foi
instituído a um antigo rei louco e perverso que foi assassinado e, durante todo
o percurso na obra, os personagens agem motivados por essa questão, com
diferentes forças e pontos de vista sobre temas pertinentes como justiça,
honra, poder, família, espiritualidade, confiança, entre outros. A
construção de cada perfil psicológico de personagem nos aproxima e nos afasta
deles (enquanto identificação como espectador), por serem demasiado humanos em
suas forças e fraquezas. Cada personagem, com sua própria linha do tempo de
percurso na narrativa (seja de evolução ou decadência de caráter), cruza com
outros personagens em uma trama que se estabelece por meio dos temas tratados
pela série.
Porém, o
que mais se destaca em Game of Thrones
e, talvez, o que garanta o grande sucesso da obra é a narrativa, ou seja, a forma como é contada a história audiovisualmente,
por meio das escolhas feitas pelos autores em relação aos planos e sequências,
compostas por enquadramentos, movimentos de câmera, sons, ruídos, metáforas
visuais e sonoras, entre outros elementos próprios desta linguagem. Então,
sendo a história relacionada a “O
que” acontece, e a trama ligada a
“Por que” acontecem os conflitos, a narrativa está aqui diretamente associada
ao “Como” contar a história, e é nisso que a série surpreende: no estilo.
Estamos
habituados a algumas diferentes maneiras de contar histórias como: a narração
linear, aquela que conta os fatos de acordo com sua ordem cronológica, “de A a
Z”, sem grandes interferências ou reviravoltas; narrativas invertidas, contadas
de trás pra frente ou por flashbacks e elipses; narrativas em paralelo, com
episódios que são intercalados sucessivamente; narrativas por diferentes
perspectivas, estabelecendo pontos de ligação entre as trajetórias dos diversos
personagens, conhecidas como “contraponto dramático”. Pessoalmente,
independente da escolha, me encantam as narrativas que subvertem o habitual e propõem
maneiras alternativas de contar histórias e experimentar diferentes
possibilidades de leitura, nos tirando de alguma forma do lugar comum.
Durante
toda a série, a orquestração dos personagens, ou seja, como os personagens veem
os conflitos e se relacionam com eles e entre eles, é pensada de forma a
colocar em xeque alguns aspectos que posicionam o espectador em um universo maniqueísta.
Porém, os autores fazem que tudo isso esteja de alguma forma contrastado e
conectado, entrelaçado, como em uma trama de tecido, de maneira a alcançar um
destino comum, como o centro de um espiral ou um redemoinho, nos surpreendendo
com rompimentos e reviravoltas que talvez não estivéssemos prevendo ou atentos
o suficiente para “ler” nas entrelinhas audiovisuais, mas que desembocam para
um ponto de fuga comum narrativo. Essa arquitetura conceitual da série nos
força, de certa forma, a visualizar tudo como sua abertura já sugere: em
“perspectiva”, em “plano geral”, por cima, visando o todo a partir do
específico e o específico a partir do geral.
A série
trabalha muito bem as metáforas audiovisuais que trazem informações valiosas
sobre os desdobramentos que o universo ficcional pode tomar. Além disso, os
personagens atuam em benefício da história de forma geral e não a partir de
objetivos específicos na trama; por isso mesmo aprendemos a ser desapegados já
que muitos morreram ao longo destes anos.
A
metáfora principal da série vem do contraste entre “fogo” e “gelo” e permeia os
diversos níveis da narrativa, desde elementos relacionados às personalidades e
emoções dos personagens, a características de cenários, iluminação, fotografia,
constituição de personagens (humanos e sobrenaturais), símbolos e nomes das
famílias/clãs, entre outros aspectos formais que compõem a obra. Todo universo
proposto se conceitua e é conduzido nesta dicotomia entre o “quente” e o
“frio”, que por sinal sempre é anunciada porvir pela célebre frase “the winter
is coming”.
Neste
início da última temporada, todas as pontas parecem começar a se amarrar,
configurando um fechamento que já vem sendo indicado por meio de sentidos
lapidados em cenas anteriores, tidas na ocasião como aleatórias ou herméticas.
Um exemplo disso é a visão que teve a personagem Daenerys Targaryen, na segunda
temporada, com o trono de ferro envolto à neve, o que pode indicar
metaforicamente, uma possível relação dela com o sobrenatural e com os White
Walkers, ou que ela se transformará na grande vilã da série e terá seu coração congelado
por não aceitar o fato de Jon Snow (agora Aegon Targaryen) ser o verdadeiro
herdeiro do trono.
A
propósito, a história de Jon Snow também é um fator a se atentar e refletir com
cuidado. Alguns elementos transformaram nossa percepção em relação ao
personagem durante o decorrer da série, quando foram reveladas, por meio de
visões e flashbacks, sua origem marcada pela movimentação do fogo ao gelo e ao
que tudo indica de volta ao fogo como Targaryen. A princípio bastardo e
excluído, Jon questiona por sua própria existência o espectador, colocando
dúvidas sobre as certezas em relação às verdades construídas acerca dos
personagens. Por ser de fato um Targaryen legítimo e herdeiro do trono, mas ter
sido criado como bastardo pelos Stark, o personagem teve proteção por sua vida
enquanto criança e também adquiriu a força moral típica deste clã, o que, no
entanto, faltava aos Targaryen, elevando assim o personagem à posição de
“herói” de toda a história.
No
primeiro episódio da última temporada, algumas pistas também foram deixadas no
que tange à confiança entre Daenerys e Jon, que, por sinal, protagonizaram a
cena mais fora da curva até o momento. Em um rompante de ternura destoante da
crueza que a série traz, o voo cavalgante nos dragões e o beijo caliente na
cachoeira congelada remete a cenas clássicas de comédias românticas, entretanto,
enfatiza a direção que está tomando a relação entre os dois e crava o conceito
dicotômico entre “gelo” e “fogo” que permeia a série.
Com um
olhar um pouco mais além, percebemos, ainda no episódio, desconfianças por
parte das irmãs Stark, além do diálogo de Samwell Tarly tanto com Daenerys
quanto com Jon, orientado por Bran, como em uma condução narrativa. Outro ponto
alto e impactante do episódio inaugural desta última temporada, no que tange à
significação, é o retorno do símbolo em espiral agora formado por membros
humanos dilacerados em chamas e um garotinho no centro, o que remete novamente
à narrativa e suas conexões conceituais e metafóricas.
Em
entrevista ao New York Post, Dave
Hill, escritor de Game of Thrones,
comentou acerca do significado deste que é um dos símbolos mais importantes da
série e que os White Walkers costumam
desenhar nos lugares que passam: “Como vimos com o Bran e o Corvo de Três
Olhos, o símbolo em espiral era sagrado para os Filhos da Floresta, que criaram
o Rei da Noite sacrificando um homem capturado, em uma espiral de pedras.
Então, o Rei da Noite adotou o símbolo em uma espécie de blasfêmia, como Satã
com a cruz invertida”. A forma em espiral já apareceu em vários momentos ao
longo da série, ganhando grande repercussão quando Bran Stark testemunhou em
uma de suas visões a criação do Rei da Noite pelos Filhos da Floresta, na sexta
temporada. As metáforas utilizadas no audiovisual, de maneira geral, favorecem
a imersão do espectador por meio de relações semióticas e, muitas vezes,
contribuem para o estabelecimento de conceitos importantes na obra por meio
de símbolos sonoros e imagéticos.
Como
diria o jornalista e escritor Arthur Koestler “O próprio fato de que
alguma coisa me lembre de outra pode se transformar numa potente fonte de
emoções.” Desde os teóricos russos do cinema, como Kuleshov, Eisenstein e
Pudovkin, sabemos que o sentido no filme é formado a partir a justaposição
sequencial de planos, de acordo com a intenção do narrador
(cinegrafista-diretor-montador) em relação à percepção do espectador. A
montagem cinematográfica é tida assim como uma das principais geradoras de
sentido no filme, por meio da organização dos planos. As metáforas vêm à tona
nesse movimento em diálogo com a iluminação, os cenários, a maquiagem, o
enquadramento, as atuações, os sons, as elipses e raccords, entre outros
elementos de linguagem que contribuem para dar novas significações às cenas e
aos personagens. Assim, o universo ficcional se expande e se mostra mais
interessante, dilatando nossa imaginação em busca de conexões que, a priori,
não se estabeleceriam e abrindo lacunas no imaginário do espectador.
Teorias
sobre o fim da série à parte, o que torna, a meu ver, a obra genial é a
excelência na utilização da linguagem audiovisual. Enquadramentos de tirar o
fôlego, trilha sonora e sonoplastia emocionante, mise-en-scéne
impecável, produção estratosférica. Tudo isso articulado com personagens
marcantes e muita fantasia e imaginação. Os personagens aprendem pequenas
lições no decorrer de toda a obra e, assim, se transformam progressivamente, tornando-se
muitas vezes irreconhecíveis, porém sem perder de vista o “olho do furacão”, o “buraco
negro”, o “centro do redemoinho”, da espiral a que todos são conduzidos e que
não temos muito claro aonde dará, pois transporta a novas possibilidades de
realidade naquele universo e consequências do percurso traçado até então na
guerra constante entre o frio e o calor que transfiguram o mundo. Mas uma coisa
é certa: o inverno enfim chegou!
Por isso,
algumas reflexões são imperativas após oito temporadas: Será que todos irão
morrer? Será que Jon irá mais uma vez renunciar ao poder? Será que Daenerys
aceitará a ideia de que Jon é seu parente e, mais do que isso, o herdeiro
direto do trono? Qual a relação entre Bran Stark e o Rei da Noite? Será que
Cersei Lannister irá deixar de ser tão perversa e se transformar em aliada
contra os White Walkers? Será que o
centro do redemoinho é o Rei da Noite? Em breve saberemos todo o desfecho para
essas questões e, apesar do tom melodramático do primeiro episódio da última
temporada, a série segue sendo uma das obras mais grandiosas já produzidas
audiovisualmente. A muralha tão simbólica na série foi rompida. As fronteiras da civilização estão cada vez mais fluidas e diluídas em dúvidas que em certezas. A única certeza que temos é de que Jon Snow
continua não sabendo de nada e por isso talvez nos identifiquemos tanto com
ele. Vivemos na ilusão ingênua de parecer entender o mundo e, com isso, acreditamos ser aquele que sabe de tudo nessa era de pós-verdades absolutas. Creio que o equilíbrio está nessa busca interna, em nós mesmos, por meio de imagens e sons que estão à
escuta de realidades complexas, não à procura de sentidos simples. De dentro pra fora e com pontes ao invés de muros.
*Texto de Frederico Carvalho
Felipe (Mestre em Arte e Cultura Visual. Especialista em
Cinema. Bacharel em Relações Internacionais. Professor de fotografia, cinema,
produção audiovisual, semiótica, linguagem visual e filosofia. Baixista nas
horas vagas. E-mail: fredcfelipe@hotmail.com).
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