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sábado, outubro 27, 2018

O Pé pode ser Pequeno, mas o Ódio é Grande.



Por Frederico Carvalho Felipe*


Nos últimos meses, com as eleições em voga em nosso país, vivemos uma polarização social calcada em premissas maniqueístas que se assemelham às narrativas melodramáticas que o cinema utiliza-se com frequência. A dicotomia de discursos e narrativas midiáticas expostas por cada candidato molda opiniões e ideologias e também constrói personagens em uma mise-en-scène onde todos os elementos que a compõe se destacam e agregam valor à trama, as vezes de maneira dramática, outras trágicas e até cômicas, porém sempre narrativas e repletas de signos que representam de certa forma a nossa sociedade. No Brasil, o tom das pornô-chanchadas dita muitos acontecimentos nesse pleito, com suas esculhambações, deboches, alegorias, teor sexual grotesco explícito e hipocrisias. Tecendo uma mescla de ficção-científica distópica, manipulação midiática, complô, fugas, facadas, viradas e broxadas, a atual fotografia política do país expõe suas vísceras em uma espécie de novela repleta de reviravoltas, cujo roteiro final se oculta de todos, inclusive dos atores e equipe, até o fim, como foi em A Próxima Vítima, de Sílvio de Abreu, exibida pela Rede Globo em 1995.
Em meio a esse clima de terror e comédia, típico do “terrir” tupiniquim levado outrora às telonas por nomes folclóricos do cinema de invenção brasileiro, busquei em uma animação comercial o ponto de partida deste texto, intitulada “Pé Pequeno” (EUA, 2018, Direção de Karey Kirkpatrick). Entrei na sala de cinema sem grandes expectativas em relação ao que iria ver e presenciei um filme que, apesar de seguir a velha fórmula narrativa e de pouco propor artisticamente e enquanto linguagem audiovisual, em alguns momentos transcende uma lenda e nos abre a imaginação para algumas possíveis interpretações e reflexões acerca de nosso contexto histórico-social atual mundial e local.
Criações artísticas provenientes do imaginário popular e ricas em elementos simbólicos ocupam um espaço importante entre o racional, o mágico, o sagrado e o profano no que diz respeito às formas de representação em nossa cultura.  Comunidades em diferentes períodos e locais ilustram seus medos, angústias, crenças, experiências, percepções e expectativas de futuro de diversas maneiras. O homem, em sua trajetória, procura dar sentido ao caos da existência e se situar no mundo por meio de mitos e lendas que abordam, muitas vezes, seres fantásticos. Tais seres integram uma área sombria configurada a partir de temas que ainda refletem certo mal-estar e inquietação em nossas vidas, como a morte, a angústia, a violência, a culpa, o diferente, o estranho, o “outro”, entre outras denominações. Tais temas são bastante abordados nessas eleições, que remetem inclusive à ecos de um período sombrio já vivido por países como Alemanha (com Hitler), Itália (com Mussolini), Espanha (com Franco), Portugal (com Salazar), Chile, Brasil, Argentina (com suas respectivas ditaduras), entre outros.
Retomando o filme, é abordado o mito do Pé Grande, bastante difundido na América do Norte e calcado na lenda dos Yetis: seres gigantes, abomináveis, peludos e ferozes que vivem na neve e são temidos e combatidos como monstros pelos seres humanos. No filme, que tem um tratamento visual e sonoro incrível, tais seres vivem no alto de uma grande montanha situada acima das nuvens e os seres humanos são tidos como um mito, o que dá nome ao filme e causa medo nos Yetis: os “Pé Pequenos”.
Os Yetis seguem leis próprias baseadas em lendas bastante parecidas com as lendas antigas da história da humanidade, as quais são relatados seres poderosos que regem e habitam o mundo. Tais lendas são tratadas como dogmas que se estabelecem pelo discurso do medo, em relação aos indivíduos que, por isso, temem em desobedecer tais “cláusulas” pétreas de tal sociedade. Uma delas diz respeito a nunca ir abaixo da montanha, além das nuvens, o que remete ao famoso Mito da Caverna de Platão e, também de forma alegórica, às manipulações diversas que estamos sujeitos em nosso cotidiano pela mídia, instituições religiosas, políticas, fake news, entre outras.
Posteriormente, na narrativa é mostrado que tais discursos dogmáticos eram utilizados ali com a pretensão de salvar os Yetis da extinção, pois seu contato com os humanos já havia aniquilado grande parte da espécie. Vemos nessa parte, tanto por lado dos humanos quantos dos Yetis, discursos típicos de regimes totalitários baseados em premissas como “isso é um mal necessário”, “a mentira é pra nos proteger” ou ainda “nós acima de tudo e de todos”, bem parecido com o slogan nazista que outrora dizia “Alemanha acima de tudo”, complementado hoje com “Deus acima de todos” por certas figuras.
Neste sentido, uma reflexão possível que o filme causa é referente à ideia da representação do “outro”, muitas vezes tido e repelido socialmente como “estranho”, típico de abordagens narrativas que envolvem monstros e seres fantásticos, como o Frankenstein, Zumbis, Lobisomens, Vampiros, etc. Seguindo as ideias de Zigmunt Bauman, em sua obra O mal-estar da pós-modernidade (1998), a fobia e repulsa que um ser, por mais bondoso que seja, causa em outro, apenas por ser diferente, traduz o julgamento social latente expondo as chagas culturais típicas da humanidade. A diversidade utópica vislumbrada pelos protagonistas se depara com percalços e limites socioculturais baseados no medo e na ideia de ameaça, gerando cisões e tensões entre as diferentes criaturas e dentro das próprias comunidades tidas como iguais. Digo “tidas como iguais” pelo fato de que ninguém é igual a ninguém em nenhum lugar do mundo. Por mais que seja parecido, cada indivíduo, seja de qual espécie for, percebe e experimenta o mundo de uma forma única e completamente distinta de outro, e isso se traduz na harmonia da vida em nosso planeta.
Os monstros, de forma geral, convergem em si mesmos – enquanto construção arquetípica e em nosso imaginário – diferentes lendas e superstições, articulando um mosaico de pavores sem uma determinada uniformidade física ou moral, como se cada terror ou maldade lhe trouxesse novos ganhos em atributos ou saciasse sua alma obscura aos olhos humanos, que usualmente reagem contra eles de maneira violenta. Em comum, vê-se uma ferocidade antropofágica bárbara destoada do cânone, cuja função é ser mau em sua ação destruidora, matando, agredindo, perseguindo e aterrorizando, como uma representação do “outro”, do inimigo, do alheio, do ataque inesperado e depredatório, deformando e ampliando o “invasor” ao status monstruoso daquilo que devemos, de alguma forma, buscar combater dentro de nós mesmos.
Porém, o que as vezes pode escapar em relação à tudo isso é a percepção de que tais representações ilustram, como um espelho, nossa própria face frente ao que não concordamos ou é destoante de nossos valores institucionalizados. Sendo assim, o pior de todos os monstros somos nós mesmos e no filme nos reconhecemos assim e refletimos sobre o quanto a espécie humana é terrível, agressiva e feroz em relação ao que não compreende ou não aceita.
Umberto Eco em sua obra História da Feiúra (2015, p. 436) coloca que “a arte dos vários séculos tem voltado com insistência a representar o feio. Por mais marginal que seja, sua voz tenta recordar que há neste mundo algo de irredutível e maligno.” Como um filme não é obra apenas do seus criadores, se completando em ciclo de interpretação, compreensão, associação e ressignificação também nas mentes dos espectadores, no fim das contas, mesmo fechando com uma mensagem de confraternização e exaltação à diversidade e à tolerância, o que creio ser importante – ludicamente falando – para as novas gerações, a obra toca em pontos importantes que nos mostram que muito da suposta maldade presente no mundo é gerada por nós mesmo, que muitas vezes nos esquecemos que vivemos em uma coletividade social, ambiental e diversificada culturalmente.
A obra aponta reflexões em relação ao momento atual que vivemos, com essa pressão (destaque para a música Under Pressure, parceria do Queen com David Bowie, muito bem adaptada e presente no filme) e essa onda conservadora que nos assola e ascende o ódio em diversos níveis. Odiamos o trânsito caótico das grandes cidades, mas passamos por cima de ciclistas e odiamos a ideia de traçar o país com trilhos ferroviários, pois interesses econômicos estão em jogo e odiamos perder, mesmo quando o intuito é que todos ganhem. Odiamos que todos ganhem. Neste último caso, em especial, o ódio se mostra disfarçado de gana, principalmente se situado no nível político da discussão. A mesma gana do ocorrido em Mariana, que não olha além do próprio umbigo e da margem de lucro e se traduz sem escrúpulos em atentados contra a sociedade, a vida, e a democracia.
A gana traduzida em ódio. A gana de ganhar somente pelo fato de ser o dono da bola e não aceitar que outras pessoas pensem de forma diferente da sua e, pior ainda, de enxergar o diferente como inferior. O ódio sob a alCunha hipócrita do egoísmo de chamar de “mito” aqueles que mentem e distorcem a realidade, disseminando ódio à humanidade e à diversidade. O ódio que nos afasta da luz e nos aproxima do lado sombrio da força. O ódio rancoroso e egoísta de querer que as coisas sejam somente da forma que achamos correto, sem enxergar novas possibilidades. O ódio traduzido em apego a bens de consumo e materiais ou a ideologias fechadas e intransigentes a mudanças e a diálogos. Diálogos que não existem, pois não há debate, apenas ódio: opressor; verticalizado; de cima pra baixo.
Podemos, de certa forma, refletir sobre nós mesmos, como os Yetis ali representados: uma sociedade condenada e que será extinta por ela mesma se não se atentar que não se pode vencer o ódio com mais ódio e mentiras, isso apenas o aumenta, da mesma forma que a violência gera mais violência. No filme vemos, mesmo que de maneira utópica, que o amor, a união e a diversidade é a resistência a essa cultura armamentista calcada em valores de ódio e que vem sendo aclamada como ideal em nosso cotidiano. Eu sigo na resistência pelo amor (ou pelo menos tento), mesmo sujeito a erros durante o caminho. Busco fazer isso por meio de autocríticas que vão pelo viés da inclusão no discurso e maneira de pensar e agir. E você, qual o seu discurso? Excludente ou includente?

*Frederico Carvalho Felipe é mestre em Arte e Cultura Visual, especialista em Cinema, bacharel em Relações Internacionais e professor de fotografia, audiovisual, semiótica e linguagem visual. E-mail: fredcfelipe@hotmail.com



segunda-feira, setembro 03, 2018

Desastre no Museu Nacional - Os autores do crime permanecem soltos

Foto: Marcelo Sayão



Texto: Leticia Guelfi 

O primeiro final de semana do mês de setembro começou mais cinza, literalmente. Ontem a noite um incêndio de proporções faraônicas atingiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Poucas horas foram suficientes para apagar 200 anos de memória da nossa história.

Enquanto isso, embora os culpados pelo ato criminoso sejam conhecidos, nenhum inquérito ou mesmo prisão foram decretados. De acordo com o Código Penal Brasileiro, Homicídio Culposo ocorre quando uma pessoa mata outra, mas sem que tivesse esta intenção, nem tendo assumido conscientemente riscos da ação. Ainda de acordo com o artigo 121, podemos caracterizar o homicídio culposo como negligência: agir sem cautela ao realizar uma ação. Por exemplo, não verificar os pneus e freios antes de viajar e causar, posteriormente, um acidente.

Embora não apareçam nas manchetes, os responsáveis por esta catástrofe são os nossos políticos que, em meio a gestões desastrosas, operam cortes a torto e a direito, sem refletir sobre as consequências dos seus atos; os mesmos que negligenciam o repasse de verbas a instituições que são pedra angular da cultura nacional. O descaso mata.

E não estamos falando somente do Museu. A situação se agrava quando pensamos que esta instituição estava vinculada à Universidade Federal do Rio de Janeiro, outro local sabidamente castigado pelos sucessivos cortes orçamentários, que objetivam, em última instância, tornar inviável a manutenção das Universidades Federais no Brasil. Em um mesmo panorama visualizamos, de um lado, goteiras, ratos, infiltrações; do outro, professores sem salários, laboratórios sucateados e interrupção de pesquisas. Um cenário no mínimo desolador.

E no ano do Bicentenário....nada temos a comemorar, pois tudo virou fumaça.

quarta-feira, agosto 01, 2018

Como se fosse loucura



Talvez,
em alguma realidade paralela
ou outra dimensão
não exatamente como a nossa,
alguém
imagine o nosso mundo
e conte para outros seres
como se fosse loucura.
Talvez.

Talvez,
Assim como os átomos, células e órgãos de nosso corpo
Sejamos também
microcosmos de um organismo maior.
Células adormecidas, ativas
adoecidas ou sadias
que derrubam, erguem, proliferam e transportam.
A vida louca no trânsito, nos shoppings ou nos aeroportos.
A vida louca nas veias, no cérebro, nos mitocôndrias.
como se fosse loucura.
Talvez.

Talvez,
O universo seja um ser em outra dimensão.
O universo seja alguém com uma diferente percepção.
A realidade para o universo seja diferente da nossa enquanto ser.
Assim como somos antes de nascer.
Assim como somos quando nossa mãe é o ar.
Assim como o espermatozoide percebe o ovulo a fecundar.
Assim como o vírus nas veias a matar.
Assim como o câncer no corpo a se alastrar.
Assim como eu e vocês, o planeta machucar.
Assim, 
como se fosse loucura.
Talvez.

terça-feira, julho 10, 2018

Twin Peaks e a viagem pelos tempos e espaços do nosso próprio imaginário.


Assim como existem profetas que ditam que a música em formato físico e compilada em álbuns está morta, há quem diga que o cinema está com os dias contados e que as novas plataformas midiáticas irão tomar conta dos meios de produção audiovisuais. Porém, na contramão destes seres apocalípticos midiáticos, o fato é que os meios artísticos, expressivos, narrativos e comunicacionais não necessariamente se extinguem ou se anulam devido a novas descobertas e avanços tecnológicos, ao contrário, transformam-se, se adequando ao contexto social que se encontram.
Desta forma, as linguagens se misturam, se hibridizam, o que possibilita novas possibilidades de leitura e interação entre a emissão da mensagem e sua recepção. A pintura não viu seu fim com o surgimento da fotografia, assim como o teatro não acabou com o advento do cinema, e, atualmente, temos diversas linguagens permeando e comunicando entre si por diversos meios. O computador é um desses meios, uma “metamídia” que aglutina e mistura digitalmente diferentes linguagens, tendo hoje como aliada a rede internet, que nos possibilita algumas facilidades em relação ao acesso e contato com obras audiovisuais de diversas partes do mundo e de diferentes épocas em segundos.
As representações artísticas e midiáticas executadas por meio de máquinas e softwares buscam, geralmente, operar com a ilusão sobre os nossos sentidos. Seja um filme, um game, ou uma série, tais fenômenos agem, de forma geral, no sentido de provocar nossa imaginação, gerando uma sensibilidade aparente que nada mais é que uma peça pregada em nós mesmos. Nessa relação, atuamos como uma espécie de re-decodificador de informações digitais abstratas provocadas por meio da tecnologia e aguçadas em nossa mente por meio da imaginação.
Inúmeros filmes, videoclipes, pinturas, personagens, histórias em quadrinhos, entre outros meios de expressão e linguagem artística, por constituírem-se como uma forma de representação e refletirem assim o contexto em que estão localizados, trazem consigo diferentes visões de mundo, preocupações sociais e orientações ideológicas. Tais obras perduram como “recortes” e testemunhas históricas do seu tempo e podem ser analisadas com a finalidade de descortinar informações muitas vezes ocultas em documentos oficiais.
Neste sentido, as tecnologias nos servem, enquanto espectadores de histórias, para ampliar nossa imaginação, buscando novas possibilidades de comunicação entre diferentes contextos e linguagens. A Netflix, conhecida plataforma on-line de filmes e séries, em parceria com o canal de TV norte-americano Showtime, nos apresentou, desde 2017, a possibilidade de contato com essa relação entre contextos diferentes com a continuação de uma obra-prima que supostamente havia se encerrado há cerca de 25 anos: Twin Peaks, do diretor David Lynch, que entre outros trabalhos, assinou Veludo Azul, A Cidade dos Sonhos, Eraserhead e A Estrada Perdida.
Twin Peaks foi uma série de sucesso no início da década de 1990, e que agora volta, em 2017, com os mesmos atores de mais de duas décadas atrás, dando prosseguimento – fato previsto na segunda temporada, quando a personagem Laura Palmer diz ao agente Dale Cooper: “Te vejo em 25 anos” – a história da investigação de um assassinato em uma pequena cidade norte-americana e suas peculiaridades com personagens estranhos e excêntricos, além de uma trama que alterna momentos de suspense, drama, policial, comédia, terror e surrealismo, destoando de produções narrativas teleológicas padrões, com início, meio e fim.
A obra aborda, por meio da representação, nossa sociedade idiotizada, alicerceada pelos pilares da grana, do status e do poder e, por outro lado, propõe níveis filosóficos de abstração do pensamento e da matéria, elevando a reflexão a aspectos metafísicos e metalinguísticos com o próprio universo precedente da narrativa e com o audiovisual e a cultura pop, de forma geral, atingindo questões sobre o que somos e qual a nossa importância no planeta por meio de nossas ações.
Além da série, o universo ficcional de Twin Peaks também se imbrica no longa-metragem intitulado Twin Peaks: os últimos dias de Laura Palmer, de 1992, o que provoca uma expansão da obra e pode se enquadrar em uma relação transmidiática no que tange à narrativa original das duas primeiras temporadas da série televisiva e, agora, da terceira temporada, também chamada de Twin Peaks: The Return.
Nesta última temporada, ao vislumbrar o futuro pelo passado (em 1991, quando a segunda temporada da série acaba) e retomando esse passado em uma nova configuração no futuro em relação àquele contexto anterior (ou seja, o agora), o diretor reflete sobre a sociedade atual e os caminhos que trilhamos desde então com nossos valores culturais ocidentais expostos em uma viagem estética e narrativa surrealista por diferentes dimensões que nos deixa atônitos e extasiados.
Um fato interessante é a maneira como o diretor lida com os cenários, alguns revisitados das outras produções de Twin Peaks e outros novos e exclusivos desta nova produção, trazendo assim uma ideia de contraste entre o conforto do espectador habitual em saber onde está localizado e a angústia/surpresa decorrente da exploração de novos ambientes. Destaque aqui ao pub The Roadhouse, o qual abriga apresentações de diversos músicos como a banda Nine Inch Nails, Eddie Vedder, entre outros, e estabelece fechamentos geniais para cada episódio da temporada.
A arte audiovisual proposta aqui se mostra arrebatadora na expansão de nossa imaginação e traduz bem o estilo de Lynch, que o consagrou e o marcou. As inúmeras transformações pelas quais passamos cotidianamente vêm à tona assistindo ao seriado. O vazio existencial que eventualmente pode consumir nossas verdades e as formas que lidamos com essas verdades absolutas estão ali representadas e questionadas em Twin Peaks, com uma poética intrigante típica do diretor. “Estamos no futuro ou estamos no passado?”, ou “Somos como o sonhador que sonha e depois vive dentro do sonho. Mas quem é o sonhador?”, são algumas questões existenciais levantadas na trama. Além da parte visual que é esplêndida, com suas cores e texturas, o uso das pausas e do som como meio narrativo também provoca uma grotesca sensação de tensão e estranhamento ao longo dos 18 episódios desse retorno.
É possível assistir a nova temporada de Twin Peaks sem ter assistido às outras produções referentes a este universo (não disponíveis na Netflix), porém, assim perde-se boa parte do contexto e das conexões com lacunas anteriormente abertas na obra, como detalhes estéticos e narrativos na mise-en-scène que possibilitam agora ao espectador atingir outros níveis de percepção.
Sugiro que, ao assistir a série, procure se desvincular de amarras estéticas e narrativas pré-concebidas. Deixe-se fluir nas lacunas oferecidas aos seus sentidos, auditivos e visuais. Adentre as articulações artísticas e referências propostas na obra. Abra-se para a reflexão por diferentes pontos de vista sobre a vida que leva e que é exposta. Twin Peaks traz a arte no sentido puro de materializar experiências intangíveis de forma a excitar nossas memórias sensoriais, rompendo com padrões e transcendendo, muitas vezes, nossa percepção do tempo, do espaço e sobre nós mesmos, de uma maneira única e completamente sensorial e até abstrata. Twin Peaks é, antes de tudo, uma obra onde o “sentir” vem antes que o “compreender”. Ademais, mergulhe fundo na obra desse genial cineasta e sonhe acordado e sem limites com suas fantásticas produções. Até a próxima aventura!

sexta-feira, maio 25, 2018

Expressionismo Breu

"Cão Breu pós-humano" sobre desenho original feito pelo artista Edgar "Ciberpajé" Franco como dedicatória pra mim durante o lançamento de seu livro "Oráculos" na Mostra Trash no fim de 2017 em Goiânia-GO-Brasil.

Know your shadow! Take a look to yourself!
Look inside your mind. Look inside your soul.
Take control about the illusion of your world!

O mundo é você!
(De dentro pra fora)
O mundo clichê!
(De fora pra dentro)
Transfiguração.
Metamorfose.
Vísceras lunar. O uivo do despertar.

Blow up your mind! Wake up!

Cani Buiu. Black Dog. Cão Breu.
Transmutar.
Reconfigurar o DNA.

O inferno é agora! O tempo não existe!
Oh Lord, Get Back! Get back, get away!

Fogo fluido.
Liquidez radioativa.
Notas diminutas.
Aracnídeas.

Blow up your mind! Wake up!

Quem olha pra fora, sonha. Quem olha pra dentro, desperta.
Qualquer árvore que queira tocar os céus precisa ter raízes tão profundas a ponto de tocar os infernos.

CIDADE DE SANGUE



Ontem, após sair do lançamento da graphic novel “Cidade de Sangue” que o amigo Márcio Jr. produziu em parceria com Julio Shimamoto, cheguei em casa, abri um vinho e fui ler a obra. Já de cara me impressionei com os traços de Shimamoto (feitos inacreditavelmente com ferro quente e maçarico) que me remetem à estética dos expressionistas e suas distorções das formas. Tive uma sensação parecida a de quando assisti pela primeira vez ao clássico “O gabinete do Dr. Caligari”: imerso em um caos de linhas turvas, formas desfiguradas e contrastes acentuadamente grotescos. Uma representação desordenada da realidade trazendo aquela boa e velha sensação de que tudo está para ruir a qualquer momento, e é exatamente isso que acontece. Tudo rui na Goiânia narrada por Márcio Jr. e Shimamoto, seja em 1995, seja em 2018. Tudo parece estar por um fio. Nada se estabelece em um solo firme e harmônico. Mesmo em contextos de alegria, a perturbação está (oni)presente. A planície da capital goiana que nos acostumamos a ver diariamente, caracterizada pela linha do horizonte e pelas formas rígidas da arquitetura Art Déco, é decomposta em pról de uma fluência em traços diagonais repletos de angústia e, principalmente, SANGUE. Um horror explícito nas expressões dos personagens, cenários e que é acentuado pela colorização em um vermelho estarrecedor feita com propriedade por Tiago Holsi.
Aos moldes bukowskianos, a cadência narrativa da graphic novel nos aproxima e ao mesmo tempo nos repele dos personagens, causando uma espécie de divisão moral em nós mesmo, estapeando-nos com nossos valores sem cair no papo melodramático de bem x mal, mas, pelo contrário, construindo uma representação calcada na crueza da humanidade, destoada de uma polarização maniqueísta e que acentua traços típicos humanos sobre questões existenciais que ocasionalmente nos acomete. Não há final feliz ou triste. Não há bem ou mal. As coisas simplesmente são, acontecem e se dão por meio de ações e reações na diegése da obra. A dúvida da fertilidade traduzida como uma base de sustentação da família. O amor em tempos de ódio. O sexo, a violência, o escárnio diabólico de uma vida enferma que transforma o mundo representado em um grande manicômio, conduzindo-nos por meio do personagem ao abismo infernal de ser julgado culpado injustamente por um crime que não foi cometido. Encarcerado, vilipendiado, diminuído à guimba do charuto ostentado pelo chefe, o personagem cai de forma livre ao inferno, pois a morte não seria um desfecho suficientemente doloroso. A maldade escancarada de um narrador que não poupa suas criaturas. Uma cidade onde não há saída. Uma cidade de sangue e lágrimas que representa o inferno da dor e do prazer de cada dia amanhecer respirando o ar seco e empoeirado do cerrado. Uma cidade treta!