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terça-feira, julho 10, 2018

Twin Peaks e a viagem pelos tempos e espaços do nosso próprio imaginário.


Assim como existem profetas que ditam que a música em formato físico e compilada em álbuns está morta, há quem diga que o cinema está com os dias contados e que as novas plataformas midiáticas irão tomar conta dos meios de produção audiovisuais. Porém, na contramão destes seres apocalípticos midiáticos, o fato é que os meios artísticos, expressivos, narrativos e comunicacionais não necessariamente se extinguem ou se anulam devido a novas descobertas e avanços tecnológicos, ao contrário, transformam-se, se adequando ao contexto social que se encontram.
Desta forma, as linguagens se misturam, se hibridizam, o que possibilita novas possibilidades de leitura e interação entre a emissão da mensagem e sua recepção. A pintura não viu seu fim com o surgimento da fotografia, assim como o teatro não acabou com o advento do cinema, e, atualmente, temos diversas linguagens permeando e comunicando entre si por diversos meios. O computador é um desses meios, uma “metamídia” que aglutina e mistura digitalmente diferentes linguagens, tendo hoje como aliada a rede internet, que nos possibilita algumas facilidades em relação ao acesso e contato com obras audiovisuais de diversas partes do mundo e de diferentes épocas em segundos.
As representações artísticas e midiáticas executadas por meio de máquinas e softwares buscam, geralmente, operar com a ilusão sobre os nossos sentidos. Seja um filme, um game, ou uma série, tais fenômenos agem, de forma geral, no sentido de provocar nossa imaginação, gerando uma sensibilidade aparente que nada mais é que uma peça pregada em nós mesmos. Nessa relação, atuamos como uma espécie de re-decodificador de informações digitais abstratas provocadas por meio da tecnologia e aguçadas em nossa mente por meio da imaginação.
Inúmeros filmes, videoclipes, pinturas, personagens, histórias em quadrinhos, entre outros meios de expressão e linguagem artística, por constituírem-se como uma forma de representação e refletirem assim o contexto em que estão localizados, trazem consigo diferentes visões de mundo, preocupações sociais e orientações ideológicas. Tais obras perduram como “recortes” e testemunhas históricas do seu tempo e podem ser analisadas com a finalidade de descortinar informações muitas vezes ocultas em documentos oficiais.
Neste sentido, as tecnologias nos servem, enquanto espectadores de histórias, para ampliar nossa imaginação, buscando novas possibilidades de comunicação entre diferentes contextos e linguagens. A Netflix, conhecida plataforma on-line de filmes e séries, em parceria com o canal de TV norte-americano Showtime, nos apresentou, desde 2017, a possibilidade de contato com essa relação entre contextos diferentes com a continuação de uma obra-prima que supostamente havia se encerrado há cerca de 25 anos: Twin Peaks, do diretor David Lynch, que entre outros trabalhos, assinou Veludo Azul, A Cidade dos Sonhos, Eraserhead e A Estrada Perdida.
Twin Peaks foi uma série de sucesso no início da década de 1990, e que agora volta, em 2017, com os mesmos atores de mais de duas décadas atrás, dando prosseguimento – fato previsto na segunda temporada, quando a personagem Laura Palmer diz ao agente Dale Cooper: “Te vejo em 25 anos” – a história da investigação de um assassinato em uma pequena cidade norte-americana e suas peculiaridades com personagens estranhos e excêntricos, além de uma trama que alterna momentos de suspense, drama, policial, comédia, terror e surrealismo, destoando de produções narrativas teleológicas padrões, com início, meio e fim.
A obra aborda, por meio da representação, nossa sociedade idiotizada, alicerceada pelos pilares da grana, do status e do poder e, por outro lado, propõe níveis filosóficos de abstração do pensamento e da matéria, elevando a reflexão a aspectos metafísicos e metalinguísticos com o próprio universo precedente da narrativa e com o audiovisual e a cultura pop, de forma geral, atingindo questões sobre o que somos e qual a nossa importância no planeta por meio de nossas ações.
Além da série, o universo ficcional de Twin Peaks também se imbrica no longa-metragem intitulado Twin Peaks: os últimos dias de Laura Palmer, de 1992, o que provoca uma expansão da obra e pode se enquadrar em uma relação transmidiática no que tange à narrativa original das duas primeiras temporadas da série televisiva e, agora, da terceira temporada, também chamada de Twin Peaks: The Return.
Nesta última temporada, ao vislumbrar o futuro pelo passado (em 1991, quando a segunda temporada da série acaba) e retomando esse passado em uma nova configuração no futuro em relação àquele contexto anterior (ou seja, o agora), o diretor reflete sobre a sociedade atual e os caminhos que trilhamos desde então com nossos valores culturais ocidentais expostos em uma viagem estética e narrativa surrealista por diferentes dimensões que nos deixa atônitos e extasiados.
Um fato interessante é a maneira como o diretor lida com os cenários, alguns revisitados das outras produções de Twin Peaks e outros novos e exclusivos desta nova produção, trazendo assim uma ideia de contraste entre o conforto do espectador habitual em saber onde está localizado e a angústia/surpresa decorrente da exploração de novos ambientes. Destaque aqui ao pub The Roadhouse, o qual abriga apresentações de diversos músicos como a banda Nine Inch Nails, Eddie Vedder, entre outros, e estabelece fechamentos geniais para cada episódio da temporada.
A arte audiovisual proposta aqui se mostra arrebatadora na expansão de nossa imaginação e traduz bem o estilo de Lynch, que o consagrou e o marcou. As inúmeras transformações pelas quais passamos cotidianamente vêm à tona assistindo ao seriado. O vazio existencial que eventualmente pode consumir nossas verdades e as formas que lidamos com essas verdades absolutas estão ali representadas e questionadas em Twin Peaks, com uma poética intrigante típica do diretor. “Estamos no futuro ou estamos no passado?”, ou “Somos como o sonhador que sonha e depois vive dentro do sonho. Mas quem é o sonhador?”, são algumas questões existenciais levantadas na trama. Além da parte visual que é esplêndida, com suas cores e texturas, o uso das pausas e do som como meio narrativo também provoca uma grotesca sensação de tensão e estranhamento ao longo dos 18 episódios desse retorno.
É possível assistir a nova temporada de Twin Peaks sem ter assistido às outras produções referentes a este universo (não disponíveis na Netflix), porém, assim perde-se boa parte do contexto e das conexões com lacunas anteriormente abertas na obra, como detalhes estéticos e narrativos na mise-en-scène que possibilitam agora ao espectador atingir outros níveis de percepção.
Sugiro que, ao assistir a série, procure se desvincular de amarras estéticas e narrativas pré-concebidas. Deixe-se fluir nas lacunas oferecidas aos seus sentidos, auditivos e visuais. Adentre as articulações artísticas e referências propostas na obra. Abra-se para a reflexão por diferentes pontos de vista sobre a vida que leva e que é exposta. Twin Peaks traz a arte no sentido puro de materializar experiências intangíveis de forma a excitar nossas memórias sensoriais, rompendo com padrões e transcendendo, muitas vezes, nossa percepção do tempo, do espaço e sobre nós mesmos, de uma maneira única e completamente sensorial e até abstrata. Twin Peaks é, antes de tudo, uma obra onde o “sentir” vem antes que o “compreender”. Ademais, mergulhe fundo na obra desse genial cineasta e sonhe acordado e sem limites com suas fantásticas produções. Até a próxima aventura!