Ontem, após sair
do lançamento da graphic novel “Cidade de Sangue” que o amigo Márcio Jr.
produziu em parceria com Julio Shimamoto, cheguei em casa, abri um vinho e fui
ler a obra. Já de cara me impressionei com os traços de Shimamoto (feitos
inacreditavelmente com ferro quente e maçarico) que me remetem à estética dos
expressionistas e suas distorções das formas. Tive uma sensação parecida a de
quando assisti pela primeira vez ao clássico “O gabinete do Dr. Caligari”: imerso
em um caos de linhas turvas, formas desfiguradas e contrastes acentuadamente
grotescos. Uma representação desordenada da realidade trazendo aquela boa e
velha sensação de que tudo está para ruir a qualquer momento, e é exatamente
isso que acontece. Tudo rui na Goiânia narrada por Márcio Jr. e Shimamoto, seja
em 1995, seja em 2018. Tudo parece estar por um fio. Nada se estabelece em um
solo firme e harmônico. Mesmo em contextos de alegria, a perturbação está
(oni)presente. A planície da capital goiana que nos acostumamos a ver
diariamente, caracterizada pela linha do horizonte e pelas formas rígidas da arquitetura
Art Déco, é decomposta em pról de uma fluência em traços diagonais repletos de
angústia e, principalmente, SANGUE. Um horror explícito nas expressões dos personagens,
cenários e que é acentuado pela colorização em um vermelho estarrecedor feita
com propriedade por Tiago Holsi.
Aos moldes
bukowskianos, a cadência narrativa da graphic novel nos aproxima e ao mesmo
tempo nos repele dos personagens, causando uma espécie de divisão moral em nós
mesmo, estapeando-nos com nossos valores sem cair no papo melodramático de bem
x mal, mas, pelo contrário, construindo uma representação calcada na crueza da
humanidade, destoada de uma polarização maniqueísta e que acentua traços
típicos humanos sobre questões existenciais que ocasionalmente nos acomete. Não
há final feliz ou triste. Não há bem ou mal. As coisas simplesmente são,
acontecem e se dão por meio de ações e reações na diegése da obra. A dúvida da fertilidade
traduzida como uma base de sustentação da família. O amor em tempos de ódio. O
sexo, a violência, o escárnio diabólico de uma vida enferma que transforma o
mundo representado em um grande manicômio, conduzindo-nos por meio do
personagem ao abismo infernal de ser julgado culpado injustamente por um crime
que não foi cometido. Encarcerado, vilipendiado, diminuído à guimba do charuto
ostentado pelo chefe, o personagem cai de forma livre ao inferno, pois a morte
não seria um desfecho suficientemente doloroso. A maldade escancarada de um
narrador que não poupa suas criaturas. Uma cidade onde não há saída. Uma cidade
de sangue e lágrimas que representa o inferno da dor e do prazer de cada dia
amanhecer respirando o ar seco e empoeirado do cerrado. Uma cidade treta!
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