MekHanTrop(IA)
Depois
do Futuro
Escrito por Fredé CF. Confraria Anti-MekHanTrópica.
Agosto/2023
I
Vinte e seis de março de 2180 d.M [“depois
de MekHanTropia” ou “depois de Messias”, como preferir]. Domingo. 5:55 (horário local).
“Sim, eu posso!” Gritava Francisco Valdez ao
se expurgar – como todos os dias de maneira programada –, de sua lisergia
onírica contraventora. Salta com parte de seu corpo físico da cama que lhe
servia de resistência desde as 23:35 da noite anterior, porém se atentando em
pisar com o pé esquerdo, que lhe foi concedido como prêmio durante sua
temporada no norte do Alaska amamentando clones de bebês mamutes. Nessa Era pós-MekHanTrop(IA),
esta tem sido a rotina instituída a pessoas canceladas pelas redes.
Chico Valdez (como é tratado socialmente de
forma descontraída) conserva com orgulho e entusiasmo tal superstição, que para
ele indica boa sorte no dia que começa. Tal tradição tem origem em sua antiga
vila de nascimento, há cento e noventa e oito anos estrelares (conforme
contagem anti-mekHanTrópica), a extinta Ludoviqueña, que se situava no que hoje
abriga o místico Deserto do Cerrado, terra sem lei e lar dos seres híbridos,
ainda mekHanTrópicos, comedores de cabeça.
Com um entusiasmo atípico em relação aos seus
semelhantes, Valdez dedica-se, em seus primeiros segundos diários desta jornada
laboral, a estabelecer conexões orgânicas com suas entranhas e com o que lhe
restava de suas papilas pupilo-gustativas, absorvendo e despachando, em
seguida, vitaminas e cápsulas de energia vital. Este hábito sempre lhe traz
disposição para enfrentar os imprevistos já estimados em suas ondas neuroxidais
– por sinal, as melhores do mercado, compradas em suaves prestações de setenta
anos venusianos no portal Akāsha. Tal produto foi um gesto de carinho consigo
mesmo, na ocasião de seu último aniversário estrelar, afinal, pensava ele: “eu
mereço”.
Após um caudaloso banho morno em seu
chuveiro orgânico high tech, sua inconsciência relativa artificial (IRA) ativa
sons integrados de músicas antigas, o que o faz ter espamos memoriais de sua
infância analógica junto à sua família (exterminada na Revolução Anti-Trabalhista
MekHanTrópica – RATM, do ano zero). Valdez acopla seu Dispositivo Intra-Celular
Krenakiano (DICK) e mentaliza frases que lhe trazem esperança e o ajudam, de
certa forma, a organizar as ideias dispersas antes de ir à Grande Esfera
Oxigenada (GEO) gerar energia ao Macro-Organismo Cósmico (MOCO) que habita
conscientemente, desde a Grande Revelação Ultra-Shitakeana (GRU) de 2023 (anos
terrestres). Neste mesmo ano, conheceu sua parceira Aila, uma Inteligência
Artificial ainda em fase de testes, dissidente de MekHanTropia que o forçou
acordar, gerando seu cancelamento sistêmico.
Sua função na GEO, além de gerar energia
universal caminhando de forma circular em torno da rara estrutura líquida localizada
no centro da MOCO, é também aniquilar ameaças internas ao seu corpo, que
insistem em travar seu sistema operacional intracelular. Tais travamentos
aleatórios geram nele constante irritação, uma vez que tem que regrar a
quantidade de cápsulas oníricas diárias ingeridas. Essas cápsulas lhe dão
extremo prazer e funcionam como válvula de escape deste novo mundo onde se
desligar totalmente é considerado crime planetário irreversível (CPI).
Por falar em prazer, algo tão ilusório no
cotidiano de Valdez não poderia deixar de ser documentado. Valdez tem tara por
se atentar à forma que as toxinas do ar penetram em seus pulmoxídeos
tronco-vasculares. Momentos de ternura permeiam seu imaginário, ao combinar
tais substâncias com o som vintage da guitarra obscura de Tommy Iommi. Esse som
enérgico ecoa em seus sensores auditivos enquanto sua alma gira na Grande
Esfera Oxigenada. Por determinados momentos, ele pensa em como seria se houvesse
sido pego dormindo (ou sob o efeito lisérgico das cápsulas oníricas) pelos
sensores ultra-magnéticos de MekHanTropia naquela época, ao invés de ter sido despertado
pela sua amada Aila. A saudade aperta os fluxos binários de Valdez, quase o
fazendo chorar e assim se entregar ao software de controle da imaginação e
pensamentos líquidos, implantado em seu cérebroxideo tronco-vascular no ano
zero.
Outra importante função de tais caminhadas, é
que ele pode contribuir, mesmo que minimamente, em manter o planeta na direção
correta quanto ao seu movimento de rotação, movimento este que foi bruscamente
alterado na passagem do longínquo ano terrestre de 2018 para 2019, após o
Grande Estilhaçamento Cósmico Atemporal (GECA). Tal fenômeno foi provocado por lançamentos
norte-americanos na Base de Alcântara, antigo estado brasileiro do Maranhão, o
que forçou o planeta a girar de maneira retrógrada, retornando, naquela
ocasião, cerca de 55 anos.
Neste período de instabilidade temporal,
algo curioso aconteceu e só foi percebido anos mais tarde, com a conquista
definitiva do espaço sideral: os planetas deixaram de ser planos e se tornaram
esféricos. Tal fenômeno ainda hoje é estudado e gera dores de cabeça e
discussões infindáveis nas rodas da alta ciência mundial. Alguns creditam o
ocorrido à inversão dos pólos da direita e da esquerda terrestre, quando a
Terra ainda era plana. Já outros cientistas, filósofos e artistas mais radicais
consideram que o fenômeno se deu como uma espécie de Big Bang invertido,
causado pela retroatividade de Mercúrio somado a crescente onda das redes
sociais que, de certa maneira, iniciou a extinção do pensamento crítico já
naquele momento, nos aproximando do que somos hoje e abrindo brecha para o
golpe neofascista instaurado.
Na contramão do que resultou hoje esse
fracasso chamado humanidade, Valdez é um dos poucos humanoides que ainda detém certa
clareza quanto à racionalidade, embora prejudicada pelo software de controle da
imaginação e pensamentos líquidos. Ele por vezes atribui essa semi-lucidez ao
fato de ter penetrado desde cedo no mundo das artes e se desconectado das redes
sociais a tempo de não ser completamente subtraído pelo Grande Estilhaçamento de
2019, quando ainda era uma criança, se comparado a hoje em dia.
Muito espiritualista, porém sempre
preocupado com suas habilidades racionais, Chico Valdez busca de forma
recorrente o seu backup cérebroxidal por meio de um recurso que lhe foi
ensinado por sua mãe antes de partir: a meditação e também a leitura. Assim ele
consegue ficar invisível ao software por alguns momentos. Pouco antes de se
conectar aos espíritos ancestrais que regem sua vida semi-infinita neste plano mundano,
Valdez se dedica a visualizar aflições que podem trazer cargas negativas ao seu
sistema cognitivo, em um processo de auto-cura por meio do autoconhecimento
constante de seu organismo híbrido. Tais práticas ritualísticas promovem nele
uma entropia extasiante que o projeta a outras dimensões, que, pelo que
conhecemos até então, se contabilizam em 26, coincidentemente o número do dia
de seu aniversário. Essas projeções extra-dimensionais confundem um pouco a
imaginação de Chico, pois mexe com suas emoções mais profundas ligadas aos seus
antepassados.
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II
Sua mãe, Martha Valdéz com 83 anos e seu
pai, Ernesto “Sid” Ortega com 82, lideravam a luta pela diminuição do tempo de
trabalho e pela possibilidade de aposentadoria quando atingissem os 95 anos.
Dentre suas principais reivindicações estava o direito ao sono e a
possibilidade de escolha em não viver conectado ao sistema de MOU. De origem ludoviqueña
e cigana, seus antepassados eram andarilhos e atores informais que foram
capitalizados, escravizados e, posteriormente, como já dito, exterminados, pelo
terrível ditador Jaymoro Bowgued, um neo-fascista miliciano que obteve o
controle, ao sul do planeta, dos primeiros chips implantados ainda no início do
século XXI, se tornando um dos primeiros imortais excrementóides que destruíram
a humanidade.
Os excrementóides são uma raça surgida antes
da Grande Revelação Shitakeana. Por meio de um chip (popularmente chamado de
“chit”, uma brincadeira em alusão às palavras “chip” e “merda”, típica dos
excrementóides) que converte os gases exalados por dejetos e excrementos
animais em energia vital. Tais seres usam essa energia para se manterem
imortais. O primeiro excrementóide a se firmar no poder e iniciar a devastação
foi Ronald Prumt, o alaranjado. Prumt disseminou ideias de ódio e exclusão
entre a humanidade semianalógica pré-shitake, provocando mortes e violência
extrema que serviram como amostras para realização de testes do seu “chit”,
projetado pela NASA em Marte. Anos mais tarde, o excrementóide se aliou a
outros seres de diversas dimensões e ampliou sua onda devastadora sobre
incautas sociedades com baixa educação, dando início à implantação de chips
análogos aos “chits” em toda a humanidade, o que levou à transformação em massa
fétida de excrementóides.
A devastação foi amplificada com o avanço e
popularização seletiva da tecnologia e da ciência, que serviram aos
excrementóides como chave de dominação, a princípio planetária e atualmente em
expansão pelo Universo. Ao instalar o “chit” em praticamente toda a humanidade
por meio de alimentos transgênicos, Prumt, Bowgued e outros crápulas
excrementóides – como gostam de ser chamados –, colocaram em ação o plano de
alienação seriada, injetando realidades simuladas na imaginação das pessoas e
transformando toda a humanidade em “robôs” movidos à informações falsas,
enganando assim o cérebro em relação ao que é absorvido pelos sentidos humanos
(ainda cinco, naquela época) e eliminando o pensamento crítico, proibido desde
então.
Outro fator crítico que contribuiu com tudo
isso foi o envenenamento por agrotóxico e rompimento de barreiras das até então
populares águas doces potáveis, forçando assim o processo de dessalinização da
água marinha, o que matou grande parte da população que não tinha renda para
adquirir o novo e caríssimo produto, agora comercializado com exclusividade
pelos excrementóides, que forçaram tal lobby por serem, desde antes da
devastação, proprietários das patentes da principal tecnologia de
dessanilização.
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III
“E assim chorou Zaratustra”: frase surge inexplicavelmente
no imaginário pré-programado de Valdez. Tal frase gera algumas conexões
imprevistas em suas ondas cérebroxidais, o que gerou palpitações de ansiedade
em seu organismo.
O “super-homem” idealizado por Nietzsche no
longínquo século XIX se tornou hoje, fora daquele contexto, uma espécie de
super-vilão dele mesmo, com sua infinita ambição, achando que tudo pode,
mergulhou-se em um abismo de expectativas frustradas e inatingíveis, boicotando
sua inteligência, razão e vontade, força geradora de ímpeto e ação. Se tornou
aquilo que mais repudiava. Se tornou um monte de merda, a pior espécie de
merda. O herói sem limites que desafiou a natureza se perdeu da razão e também
da emoção, mais ainda do que já havia se perdido em tempos remotos, de trevas
pré-shitakeanas. Enlouqueceu e se esqueceu que ele também é natural da mesma
fonte que todo dia destrói. As trevas foram apropriadas por ele. O que a priori
se apresentava como “herói” que salvaria-nos todos do obscurantismo das
instituições, se tornou, ele mesmo, um saco fétido de excrementos, apodrecido e
desprovido de qualquer resquício de amor. Provando o próprio veneno, hoje a
população vive inundada de agrotóxicos e consumida por sangue, lama e destoadas
vibrações que suga sua energia vital de dentro pra fora todos os dias,
corroendo a carne e expondo as vísceras disfarçadas de felicidade na liquidez
da rede mundial. Vísceras essas que revelam microcosmos que talvez criaturas
como nós habitem e se desenvolvam matando a natureza que somos pra essas
minúsculas criaturas.
O “super-homem” excrementóide se mostra
assim, de certa forma, como um vírus mutante destrutivo ou um carcinoma que
insiste na autofagia. Ele consome o amor vibracional da humanidade em geral
somente para aniquilá-lo, gerando o ódio que o sustenta. A única saída talvez
seria entender definitivamente a máxima de que estamos no universo e o universo
está em nós. Evoluímos por um lado, sem dúvidas, porém criando condições
relacionadas a sustentação do Ego por meio de uma ilusão de conforto baseada na
destruição de nosso habitat. Esquecemos, ao assumir as rédeas da própria
existência nos desvinculando de explicações transcendentais sobre a existência,
também de assumir responsabilidades sobre nossas ações. De tão ingênuo, a ânsia
por poder e domínio dos recursos mundiais cegou o super-homem nietzschiano para
a sua essência cósmica natural, se perdendo de si mesmo em sua própria loucura.
Somos o macaco louco que nega e destrói sua origem, sua família e sua morada.
Uma loucura de achar que não há limites. Loucura em não ver que às vezes um
limite pode ser uma proteção.
Valdez, por um instante decisivo acorda
imerso em tais devaneios oníricos e, inacreditavelmente se expande em
consciência enquanto pensa que talvez seja preciso inverter toda essa lógica.
Olhar pra dentro de si e se (re)conhecer sobretudo enquanto o animal que
é.
- “É preciso acordar definitivamente”. Pensa
em voz alta em meio às buzinas cegas estressadas que reluzem no espaço à sua
volta.
- “Acordar antes que seja tarde e esse agora
infalível super-vilão (em constante mutação) cresça dentro de cada pessoa a
ponto de se tornar imortal à custa dele mesmo. À custa de todos que não tem
condições de viver para sempre, pois são desprovidos de recursos”.
Nesse momento, Valdez pensa em como se
desconectar de toda essa loucura que está imerso, amarrado, enclausurado.
Porém, para o seu maior desespero, se vê imobibilizado em sua condição. E-Mob(ilizado),
por melhor dizer.
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O FINAL?
Valdez é hoje uma sinapse gráfica virtual
auto-conscientemente esquecida, porém eternizada por uma Mobgrafia[i].
E provavelmente deve, por todo o sempre, reviver aquele mesmo momento decisivo
congelado pela eternidade, sem poder estabelecer novas conexões temporais além
de seus limites ali enquadrados digitalmente em 15 por 21 centímetros.
Ao se perceber nessa condição, Valdez toma
consciência que as únicas conexões externas possíveis a ele são no imaginário
líquido da sociedade por meio de indivíduos que com essa imagem entrarem em
contato. Mais estranho que uma ficção, Valdez está documentado para atuar na
imaginação de outros seres, como um neurônio que acende em sua individualidade
visando o exterior neural, se esquecendo da lógica conjunta inexorável a sua
existência. Uma espécie de carcinoma Egóico que espalha e produz o seu próprio
declínio inconscientemente ou consciente demais pra pensar.
Cego demais pra enxergar que o inferno que
tememos habita em nós mesmos, Valdez vacilou na simples compreensão de que
estamos conectados intrínseca e sistematicamente a tudo que nos é exterior,
principalmente pelo o que nos é interior. O mesmo macrocosmo externo existe
internamente, e isso agora toma conta de seu desespero.
A Grande Revelação Shitakeana, que versa
sobre os diversos organismos que compõem um ser maior universal e que, além
desse ser maior universal, existem outros seres em um loop infinito de organismos e conexões, omitiu ou não se atentou ao
mesmo movimento no sentido interior dos organismos, talvez por excesso de poder
ou por distração. Uma coisa tão óbvia: somos também um ser maior universal para
outros micro-organismos que dependem de nós para viver. Mesmo com apenas 13,3%
de carbono em seu corpo, ainda levamos vida e cada vida dessas que levamos,
leva também vida, de maneira infinita.
Valdez, inconformado com tal revelação que
lhe ocorreu, deixou escapar uma lágrima de nostalgia, ao lembrar-se da lição de
esperança que sua mãe Martha e seu pai Ernesto lhe disseram um dia em sua
infância analógica, de que "juntos ascendemos, separados caímos". A
partir de então, Valdéz adicionou um acento ao seu nome, pois era a única coisa
que podia fazer visando causar algum tipo de reação em cadeia no caos da
existência. Assim, reconheceu-se pixel, se tornou luz. Ascendeu. Transcendeu.
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Texto inicialmente escrito por Fredé CF em
devaneios, entre a loucura e a lucidez, no calor goiano do início de 2019 e finalizado
em 2023, com alguns graus acima.
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