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domingo, novembro 24, 2019

“Coringa”, “Bacurau” e “Sem Retorno”: a solidão e a resistência dos “invisíveis” aos olhos do sistema.

Sem Retorno, de Rosa Berardo

Em meio a um contexto histórico, político, econômico e sociocultural tormentoso como o que vivemos, buscamos em dois filmes brasileiros e um estadunidense algumas relações de representação de aspectos cruciais da nossa condição. Ao observar tais obras nos atentamos à alguns temas/conceitos presentes em todas as narrativas, são eles: a solidão, a invisibilidade social e o autoconhecimento.
Os filmes foram todos lançados no ano de 2019: Bacurau, de Kleber Mendonça Filho, Sem Retorno, de Rosa Berardo e o Coringa, de Todd Phillips. Além dos temas já citados, todos os filmes lidam (cada um de sua maneira, mas de forma pontual) com a noção de “estranhos sociais” a partir do realismo fantástico. Essas representações nos abrem a imaginação para algumas possíveis interpretações e reflexões acerca de nossa civilização nos níveis “mundial”, “nacional” e “local”. As ideias levantadas pelas obras nos situam em uma era global, que apesar de haver uma maior fluidez de barreiras culturais e um amplo “cosmopolitismo virtual”, as culturas tradicionais, folclóricas, locais são vistas como exóticas por não se enquadrarem em algum padrão geral que o sistema busca estabelecer para facilitar a manipulação. Porém, algumas noções estéticas ainda podem ser consideradas e sistematizadas, apesar de não estarem isentas a transformações (muito pelo contrário).
Bacurau, de Kléber Mendonça Filho
Um filme não é obra apenas dos seus criadores, pois se completa em ciclos de interpretação, compreensão, associação e ressignificação também nas mentes dos espectadores. No fim das contas, as obras aqui articuladas tocam em pontos importantes que nos mostram que muito da suposta maldade maniqueísta presente no mundo é gerada por nós mesmo a partir de uma moral ideológica idealizada, ou, por ignorarmos e normalizarmos a existência de certos aspectos, nos perdemos em meio à ganância e à vaidade, o que gera mais dor e sofrimento a nós mesmo, produtores de nossas próprias existências, à luz do existencialismo.
As obras apontam reflexões em relação às pressões cotidianas que somos acometidos e a onda conservadora que assola o planeta e ascende o ódio em diversos níveis, desde as micro-realidades cotidianas às macro-estruturas globais, referentes ao sistema capitalista, determinando muito acerca de nossa condição social.
Entre os diversos temas tratados, a questão da “invisibilidade social” é um assunto recorrente em todos esses filmes. Em Bacurau, vê-se a invisibilidade de um povoado que é excluído do mapa e perseguido por atiradores de elite gringos em um jogo mortal genocida. Em Sem Retorno, a invisibilidade se manifesta sobre um vendedor de utensílios domésticos perante a sociedade e o seu próprio descaso com o próximo, fazendo invisíveis outras pessoas, como uma senhora abandonada pela família ou uma mulher que vive isolada em uma fazenda autossustentável. Em Coringa a invisibilidade urge no personagem enquanto ser humano, dotado de emoções e sentimentos, se acentuando na relação das pessoas com sua doença incomum, de um riso incontrolado. Todas as narrativas conduzem à ideia de que a partir do reconhecimento dessa própria invisibilidade, pode-se modificar a realidade por meio de atitudes de contestação e resistência às normas que promovem essa condição.
Coringa, de Todd Phillips
Para Zygmunt Bauman, em O mal estar da pós-modernidade (1998), os “estranhos sociais” são aqueles que não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético da civilização. A simples presença deles deixaria o ambiente turvo, confuso e traria a angústia em oposição à alegria, gerando incertezas. Esses “estranhos” geralmente estão associados àqueles que não se enquadram nas normas estipuladas pela cultura dominante. Assim, um estranho que questiona padrões propondo reflexões ou expondo fragilidades em relação ao sistema, se constitui em uma ameaça ao mundo utópico que a normatização pretende estabelecer.
A fobia e a repulsa que um ser, por mais bondoso que seja, causa em outro, apenas por ser diferente, traduz o julgamento social latente expondo chagas culturais típicas da humanidade. A diversidade utópica vislumbrada por alguns teóricos humanistas se depara com percalços e limites socioculturais baseados no lucro insaciável, no medo e na ideia de ameaça, gerando cisões e tensões entre personagens dentro de suas próprias comunidades. As diferenças e subjetividades de cada personagem vem à tona e se chocam com uma realidade utópica construída e calcada na moral e nos bons costumes, mas que também rui a todo momento.
Por mais que sejam parecidos, cada indivíduo, percebe e experimenta o mundo de uma forma única e completamente distinta de outro, uma vez que os referenciais de memória, percepção e imaginação são variados, além da intencionalidade que se dá a estes referenciais em cada consciência.
Assim, os personagens que não se enquadram nos padrões (em especial os monstros, vilões e anti-heróis) convergem em si mesmos – enquanto construção arquetípica e em nosso imaginário – diferentes valores, angústias, medos, superstições, entre outros elementos da psiquê, articulando um mosaico de sentimentos sem uma determinada uniformidade psíquica, física ou moral, como se cada atitude lhe trouxesse novos ganhos em atributos, ou saciasse sua “alma” destoada ao olhar do cânone.
Em comum, vê-se uma ferocidade grotesca, antropofágica e bárbara, destoada da norma, consumir e adentrar tais estruturas de representação, cujo espectro tende a ser objetivo em sua ação contestadora, matando, agredindo, perseguindo, aterrorizando ou, até mesmo, salvando toda uma população, mesmo que de maneira desajustada, como o personagem Lunga em Bacurau, um criminoso aos olhos da sociedade normativa disciplinar, porém herói de seu povo.
Bacurau, de Kléber Mendonça Filho
Os monstros somos nós mesmos, e nos filmes nos reconhecemos assim, de diferentes maneiras, mas em nenhuma delas alheia à nossa ainda persistente humanidade frente as questões abordadas. Ao nos vermos deslocados para a telona por meio da representação nos identificamos ou repelimos arquétipos ali colocados em forma de personagens inserido em espaços (cenários) fantasiosos. Pela montagem e ritmo de condução narrativa, abre-se, nestas obras, a possibilidade de inserir a imaginação ao espectador para reflexões sobre o quanto a espécie humana é ao mesmo tempo terrível, agressiva e feroz em relação ao que não compreende ou não aceita e unida, combativa, persistente e aguerrida quando se interfere nos próprios sonhos, identidades culturais e noções de pertencimento. Desta forma, há uma preciosa relação entre as obras analisadas: as alegorias de resistência e solidão propostas entre os cenários e os personagens, entre os corpos e as paisagens.
Criações artísticas provenientes do imaginário popular e ricas em elementos simbólicos ocupam um espaço importante entre o racional, o emocional, o imaginário, o mágico, o sagrado e o profano no que diz respeito às formas de representação em nossa cultura.  As obras em questão tratam sobre o aspecto da naturalização da estranheza de maneiras distintas, porém interessantes em cada contexto representado. A loucura, o sonho, a morte, o limbo, a alucinação, o sobrenatural, a exclusão, a não adequação à normas institucionalizadas, são temas que permeiam as três produções e conduzem as narrativas, cada uma a sua maneira, ao nosso olhar interior em relação às formas que lidamos com o mundo e com a gente mesmo.
Em Bacurau, o povoado onde se passa a trama, já distante do restante do país, é ainda mais isolado quando retirado do mapa e quando são cortados os meios de comunicação e o abastecimento de recursos. O distanciamento no filme se dá em relação ao centro de decisões políticas e econômicas do país, localizado na cidade grande e que reconhece e legitima muito mais o que vem de fora que as próprias tradições. Com isso, há uma invisibilidade de todo um povo que, a partir do autoconhecimento de sua história (aí o museu ser mais importante que a igreja, na narrativa), resiste e luta pelo direito de existir.
Sem Retorno, de Rosa Berardo
Em Sem Retorno, o contraste entre o ambiente urbano e o meio rural nos causa reflexões acerca do que de fato podemos considerar como problemático. Qual seria de fato o lugar inóspito? Um lugar repleto de pessoas que não se importam com ninguém e que estão presas em seus próprios delírios “egóicos”, ou um lugar isolado onde a individualidade e o autoconhecimento é importante? O filme traz a ideia da normalização por nós mesmos de nossa própria invisibilidade social. Nos rendemos, muitas vezes, ao controle do sistema, permanecendo, como engrenagens, em empregos que odiamos, nos relacionando com pessoas que não gostamos e querendo impressionar essas pessoas que não gostamos com coisas que não temos e de fato não queremos. Um tapa na cara de uma sociedade hipócrita calcada em valores padronizantes e alienantes, onde o “outro”, mais que um estranho, é um número a ser contabilizado. Tais valores fazem eclodir a solidão que nos assola. O filme ilustra de forma poética toda a perturbação e dependência que colocamos no consumo e no lucro acima de qualquer coisa. Um estilo de vida fatal, onde perdemos o afeto por ouvir histórias e que assim submergimos em nosso egoísmo e ignorância, pela incapacidade de enxergar o “outro”. Para conseguir avistar isso, o personagem precisa voltar à realidade sufocante da cidade grande e, ao se deparar com toda falta de sensibilidade e atenção com o “outro” (que agora é ele mesmo), parte para se autoconhecer ao ponto de não ser mais possível retornar àquela condição de adequação normatizada.
Sem Retorno, de Rosa Berardo

Já em Coringa, Gotham City, criada no universo dos quadrinhos para representar a vida em qualquer metrópole do mundo, é o cenário do filme que enclausura os personagens em suas próprias perturbações, ganâncias e vaidades. A solidão é o elemento condutor da vida daquelas pessoas. Ou você é o sistema, ou você se rende ao sistema, se adequando aos padrões normatizadores da sociedade ou você se torna um estranho, excluído, invisível e lançado ao limbo, ao próprio azar em um mundo nada amistoso. Na medida em que o mundo que cerca o personagem Arthur segue em colapso, o caos que o habita internamente eclode e ele o reconhece, legitimando-o em si mesmo e não se importando mais com as normas institucionalizadas.
O personagem enxerga que em um mundo doente, ser normal é estar tão doente quanto o mundo, ao soltar a frase: "Sou eu ou o mundo está ficando mais louco?". A partir da invisibilidade de sua condição social, da ruína de suas relações (laborais, familiares, afetivas, psicológicas, entre outras) e da solidão que o assola, somado ao corte da mínima assistência social que ele ainda dispunha, vem o surto a partir de um autoconhecimento macabro, aniquilando tudo aquilo que é problemático em sua vida (segundo seu ponto de vista na narrativa) e transcendendo seus valores para uma aceitação daquilo que para o mundo é uma loucura.

Coringa, de Todd Phillips

Porém, para o mundo ele já era louco, mesmo tentando se adaptar. Arthur desabafa: “a pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse". Ele abraça a própria “sombra” e entra em conexão com tudo aquilo que reprimia, sublimando tais emoções de maneira violenta. Isso fica bem explícito nos questionamentos do personagem durante uma entrevista em um programa de TV: “Quem diz o que é normal? Quem diz o que é loucura? Quem diz o que é engraçado? Eu pensava que minha vida fosse uma tragédia. Agora me dou conta de que é uma comédia".
Assim, nas narrativas expõe-se a ideia de que para viver o seu “eu real”, despido de “máscaras” sociais, somos reprimidos acerca de nossos desejos instintuais e naturais, o que, invariavelmente, contribui com nossa ruína em uma cultura normatizada, uma vez que nossa subjetividade (ou seja, nossa existência enquanto ser único e potencial) é aniquilada em função do olhar institucional padronizante.
Inúmeras obras audiovisuais, entre outros meios de expressão artística, por constituírem-se intrinsecamente de formas de representar o mundo e refletir assim o contexto em que estão localizadas, trazem consigo diversas visões de mundo, preocupações sociais e orientações ideológicas. Tais obras perduram como testemunhas históricas do seu tempo e podem ser analisadas com a finalidade de trazer informações muitas vezes ocultas em documentos oficiais.
A arte como contestação do status quo, em determinados momentos, teve que estar inserida no sistema para poder questioná-lo, algumas vezes com consciência e eficiência, outras não. Como o louco que nos aponta a sanidade da civilização ou a falta dela, esses questionamentos vindos de dentro, já dominados e cooptados pela indústria, reafirmam a ideia de que para existir, por exemplo, o “excêntrico” é necessária, a priori, a existência (ou a concepção) de um “centro” normatizado contrastante, que só é possível ser questionado a partir das ferramentas, elementos e recursos associados a tal. Por outro lado, só podemos reconhecer o quanto o ambiente em que estamos nos faz mal, saindo dele. (“Só se pode ver a ilha se sairmos da ilha”, nas ideias de Saramago).
Portanto, uma questão que permeia as três obras talvez seja sobre a famigerada ideia de liberdade. A liberdade em essência, aquela utópica, rousseauniana, que perdemos quando vivemos enquadrados à regulação do sistema. Aquela dos outros animais, que não do ser humano. Algumas perguntas inconscientes que os personagens desses filmes despertam são: quero ser livre, o máximo possível, ou quero voltar a ser mais uma engrenagem no sistema, quantificado? Qual o preço que se paga por ser livre? O que é a felicidade? O que é ser feliz em uma sociedade que não está interessada nisso, uma vez que a felicidade não gera lucro? Tais reflexões coadunam com as visões de Byung-Chul Han, referentes a sobrecarga que sofremos/nos impomos na sociedade atual e também à Jonathan Crary na ideia de que o sono é um dos grandes meios ainda de resistência em uma sociedade ligada ao consumo: 24 horas por dia, 7 dias por semana.
A desumanização da sociedade e a ruína das clássicas instituições de controle transformadas pelo aumento da dependência extrema pela tecnologia, exalta, através da comunicação em massa, uma falsa felicidade do “ter” acima do “ser”, aprisionando-nos voluntariamente ao padrão. Essa relação doentia e de autoflagelo que é extensamente abordada nos filmes.
Bacurau, de Kléber Mendonça Filho

A resistência também é outro tema importante, que tece um fio de ligação entre os três filmes. Ao mesmo tempo que evidenciam o problema, apresentam possibilidades de libertação. A resistência é contra a noção de uma padronização do nosso bem mais precioso: o tempo. A exaltação de subjetividades e ritmos de vida diferentes, desenquadrados ao institucional, vivendo e se impondo em outros tempos. Humanizados em sua loucura e monstruoso perante o que é enquadrado. A contestação pelo tempo vivido, pelo momento usufruído, pela transcendência na relação com o mundo, talvez seja mesmo a última fronteira, como previa Crary, da resistência. A refutação da lógica da positividade como único meio de felicidade, em uma sociedade que prega que podemos tudo ("yes we can") e na verdade não podemos nada, pois estamos quebrados financeiramente, fisicamente e psico-emocionalmente, expostos a frustrações causadas pela alta expectativa de “vencer na vida”. Uma vida cada vez mais cara e excludente. Um ciclo vicioso que nos prende ao sistema. A mecanização das relações e o esvaziamento da empatia pela individualização e pelo egoísmo impregnados culturalmente. A invisibilidade do "outro", do diferente, do não-enquadrado, do que não pode oferecer lucro ou qualquer coisa além da própria subjetividade. A invisibilidade de todos nós, avassaladora maioria da população, que não detém os meios de produção. A importância da contestação de utopias que não são nossas. A ideia de que a utopia da natureza é a nossa distopia, e vice-versa. Se o nosso habitat natural se tornou estranho (a natureza como alegoria do estranho), seria ainda nosso habitat natural? Seríamos ainda animais ou já nos tornamos máquinas? Estamos ainda integrados ao planeta? Seria o fim do humanismo? Afinal, quem é o louco? Os que alegram os reis com o intuito de virar reis e ser alegrado por outros bobos? Ou os que “aniquilam” os "reis" de forma visceral e resistem, buscando novas formas de viver? Resistência!
Assim, colocando em perspectiva, é interessante pensar estes fenômenos enquanto representação de reflexões acerca das relações humanas atuais, lidando com a arte como outras formas de interpretar o mundo que habitamos e com a intenção de se deparar conscientemente (ou não) com a realidade e a complexidade das coisas externas e internas ao pensamento humano, exibindo suas hipocrisias, contradições e convulsões cobertas e podadas pela moral social. A arte como resistência, mesmo que inserida, como no caso do Coringa, no sistema. A arte que corrói, de dentro pra fora expondo as vísceras. A arte é o que incomoda.
E quem pode garantir que tudo que ali se passa nos filmes nada mais é que uma extensa alucinação dos personagens? Tanto em Bacurau, quanto em Sem Retorno e em Coringa, as narrativas nos abrem brechas para tal devaneio, na maneira como são utilizadas a linguagem cinematográfica e como são conduzidas as narrativas com elementos alucinógenos (Bacurau), oníricos (Sem Retorno) e de delírios mentais (Coringa). Tudo aquilo pode não passar de alucinações dos personagens dentro das narrativas, assim como são para nós enquanto espectadores ou, como diria Méliès, sonhadores acordados sentados imersos na sala de cinema.
O que fica, afinal, é a reflexão de que a arte e os artistas podem operar como medidores bem precisos dos fenômenos que abalam o imaginário social. O que as vezes pode escapar em relação a tudo isso é a percepção de que tais representações ilustram, como um espelho, nossa própria face frente ao mundo e ao que não concordamos ou é destoante de nossos valores pessoais. Isso pode ser problemático e desencadear exaltações como as vistas em algumas situações nos lançamentos destes e de outros filmes, pois traz à tona hipocrisias que teimamos em carregar.

* Texto de Frederico Carvalho Felipe, doutorando e mestre em Arte e Cultura Visual - UFG, especialista em Cinema, bacharel em Relações Internacionais, professor de Fotografia, Cinema, Produção Audiovisual, Semiótica, Linguagem Visual e LIV. E-mail: fredcfelipe@gmail.com

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