Em meio a um contexto histórico, político,
econômico e sociocultural tormentoso como o que vivemos, buscamos em dois
filmes brasileiros e um estadunidense algumas relações de representação de
aspectos cruciais da nossa condição. Ao observar tais obras nos atentamos à
alguns temas/conceitos presentes em todas as narrativas, são eles: a solidão, a
invisibilidade social e o autoconhecimento.
Os filmes foram todos lançados no ano de 2019: Bacurau,
de Kleber Mendonça Filho, Sem Retorno, de Rosa Berardo e o Coringa,
de Todd Phillips. Além dos temas já citados, todos os filmes lidam (cada um de
sua maneira, mas de forma pontual) com a noção de “estranhos sociais” a partir
do realismo fantástico. Essas representações nos abrem a imaginação para algumas
possíveis interpretações e reflexões acerca de nossa civilização nos níveis
“mundial”, “nacional” e “local”. As ideias levantadas pelas obras nos situam em
uma era global, que apesar de haver uma maior fluidez de barreiras culturais e
um amplo “cosmopolitismo virtual”, as culturas tradicionais, folclóricas,
locais são vistas como exóticas por não se enquadrarem em algum padrão geral
que o sistema busca estabelecer para facilitar a manipulação. Porém, algumas
noções estéticas ainda podem ser consideradas e sistematizadas, apesar de não
estarem isentas a transformações (muito pelo contrário).
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As obras apontam reflexões em relação às pressões
cotidianas que somos acometidos e a onda conservadora que assola o planeta e
ascende o ódio em diversos níveis, desde as micro-realidades cotidianas às macro-estruturas
globais, referentes ao sistema capitalista, determinando muito acerca de nossa
condição social.
Entre os diversos temas tratados, a questão da
“invisibilidade social” é um assunto recorrente em todos esses filmes. Em Bacurau,
vê-se a invisibilidade de um povoado que é excluído do mapa e perseguido por
atiradores de elite gringos em um jogo mortal genocida. Em Sem Retorno,
a invisibilidade se manifesta sobre um vendedor de utensílios domésticos
perante a sociedade e o seu próprio descaso com o próximo, fazendo invisíveis outras pessoas, como uma senhora abandonada pela família ou uma mulher que vive
isolada em uma fazenda autossustentável. Em Coringa a invisibilidade
urge no personagem enquanto ser humano, dotado de emoções e sentimentos, se
acentuando na relação das pessoas com sua doença incomum, de um riso incontrolado.
Todas as narrativas conduzem à ideia de que a partir do reconhecimento dessa
própria invisibilidade, pode-se modificar a realidade por meio de atitudes de
contestação e resistência às normas que promovem essa condição.
Coringa, de Todd Phillips |
A fobia e a repulsa que
um ser, por mais bondoso que seja, causa em outro, apenas por ser diferente,
traduz o julgamento social latente expondo chagas culturais típicas da
humanidade. A diversidade utópica vislumbrada por alguns teóricos humanistas se
depara com percalços e limites socioculturais baseados no lucro insaciável, no
medo e na ideia de ameaça, gerando cisões e tensões entre personagens dentro de
suas próprias comunidades. As diferenças e subjetividades de cada personagem
vem à tona e se chocam com uma realidade utópica construída e calcada na moral
e nos bons costumes, mas que também rui a todo momento.
Por mais que sejam
parecidos, cada indivíduo, percebe e experimenta o mundo de uma forma única e
completamente distinta de outro, uma vez que os referenciais de memória,
percepção e imaginação são variados, além da intencionalidade que se dá a estes
referenciais em cada consciência.
Assim, os personagens que
não se enquadram nos padrões (em especial os monstros, vilões e anti-heróis)
convergem em si mesmos – enquanto construção arquetípica e em nosso imaginário
– diferentes valores, angústias, medos, superstições, entre outros elementos da
psiquê, articulando um mosaico de sentimentos sem uma determinada uniformidade
psíquica, física ou moral, como se cada atitude lhe trouxesse novos ganhos em
atributos, ou saciasse sua “alma” destoada ao olhar do cânone.
Em comum, vê-se uma
ferocidade grotesca, antropofágica e bárbara, destoada da norma, consumir e
adentrar tais estruturas de representação, cujo espectro tende a ser objetivo
em sua ação contestadora, matando, agredindo, perseguindo, aterrorizando ou,
até mesmo, salvando toda uma população, mesmo que de maneira desajustada, como
o personagem Lunga em Bacurau, um criminoso aos olhos da sociedade
normativa disciplinar, porém herói de seu povo.
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Os monstros somos nós mesmos, e nos filmes nos
reconhecemos assim, de diferentes maneiras, mas em nenhuma delas alheia à nossa
ainda persistente humanidade frente as questões abordadas. Ao nos vermos
deslocados para a telona por meio da representação nos identificamos ou
repelimos arquétipos ali colocados em forma de personagens inserido em espaços
(cenários) fantasiosos. Pela montagem e ritmo de condução narrativa, abre-se,
nestas obras, a possibilidade de inserir a imaginação ao espectador para reflexões
sobre o quanto a espécie humana é ao mesmo tempo terrível, agressiva e feroz em
relação ao que não compreende ou não aceita e unida, combativa, persistente e
aguerrida quando se interfere nos próprios sonhos, identidades culturais e
noções de pertencimento. Desta forma, há uma preciosa relação entre as obras
analisadas: as alegorias de resistência e solidão propostas entre os cenários e
os personagens, entre os corpos e as paisagens.
Criações artísticas provenientes do imaginário
popular e ricas em elementos simbólicos ocupam um espaço importante entre o
racional, o emocional, o imaginário, o mágico, o sagrado e o profano no que diz
respeito às formas de representação em nossa cultura. As obras em
questão tratam sobre o aspecto da naturalização da estranheza de maneiras
distintas, porém interessantes em cada contexto representado. A loucura, o
sonho, a morte, o limbo, a alucinação, o sobrenatural, a exclusão, a não
adequação à normas institucionalizadas, são temas que permeiam as três
produções e conduzem as narrativas, cada uma a sua maneira, ao nosso olhar
interior em relação às formas que lidamos com o mundo e com a gente mesmo.
Em Bacurau, o povoado onde se passa a trama,
já distante do restante do país, é ainda mais isolado quando retirado do mapa e
quando são cortados os meios de comunicação e o abastecimento de recursos. O
distanciamento no filme se dá em relação ao centro de decisões políticas e
econômicas do país, localizado na cidade grande e que reconhece e legitima
muito mais o que vem de fora que as próprias tradições. Com isso, há uma
invisibilidade de todo um povo que, a partir do autoconhecimento de sua
história (aí o museu ser mais importante que a igreja, na narrativa), resiste e
luta pelo direito de existir.
Sem Retorno, de Rosa Berardo |
Em Sem Retorno, o contraste entre o ambiente
urbano e o meio rural nos causa reflexões acerca do que de fato podemos
considerar como problemático. Qual seria de fato o lugar inóspito? Um lugar
repleto de pessoas que não se importam com ninguém e que estão presas em seus
próprios delírios “egóicos”, ou um lugar isolado onde a individualidade e o
autoconhecimento é importante? O filme traz a ideia da normalização por nós
mesmos de nossa própria invisibilidade social. Nos rendemos, muitas vezes, ao controle
do sistema, permanecendo, como engrenagens, em empregos que odiamos, nos
relacionando com pessoas que não gostamos e querendo impressionar essas pessoas
que não gostamos com coisas que não temos e de fato não queremos. Um tapa na
cara de uma sociedade hipócrita calcada em valores padronizantes e alienantes,
onde o “outro”, mais que um estranho, é um número a ser contabilizado. Tais
valores fazem eclodir a solidão que nos assola. O filme ilustra de forma
poética toda a perturbação e dependência que colocamos no consumo e no lucro
acima de qualquer coisa. Um estilo de vida fatal, onde perdemos o afeto por
ouvir histórias e que assim submergimos em nosso egoísmo e ignorância, pela
incapacidade de enxergar o “outro”. Para conseguir avistar isso, o personagem
precisa voltar à realidade sufocante da cidade grande e, ao se deparar com toda
falta de sensibilidade e atenção com o “outro” (que agora é ele mesmo), parte
para se autoconhecer ao ponto de não ser mais possível retornar àquela condição
de adequação normatizada.
Sem Retorno, de Rosa Berardo |
Já em Coringa, Gotham City, criada no
universo dos quadrinhos para representar a vida em qualquer metrópole do mundo,
é o cenário do filme que enclausura os personagens em suas próprias
perturbações, ganâncias e vaidades. A solidão é o elemento condutor da vida
daquelas pessoas. Ou você é o sistema, ou você se rende ao sistema, se
adequando aos padrões normatizadores da sociedade ou você se torna um estranho,
excluído, invisível e lançado ao limbo, ao próprio azar em um mundo nada
amistoso. Na medida em que o mundo que cerca o personagem Arthur segue em
colapso, o caos que o habita internamente eclode e ele o reconhece,
legitimando-o em si mesmo e não se importando mais com as normas
institucionalizadas.
O personagem enxerga que em um mundo doente, ser
normal é estar tão doente quanto o mundo, ao soltar a frase: "Sou eu ou o
mundo está ficando mais louco?". A partir da invisibilidade de sua condição
social, da ruína de suas relações (laborais, familiares, afetivas,
psicológicas, entre outras) e da solidão que o assola, somado ao corte da
mínima assistência social que ele ainda dispunha, vem o surto a partir de um
autoconhecimento macabro, aniquilando tudo aquilo que é problemático em sua
vida (segundo seu ponto de vista na narrativa) e transcendendo seus valores
para uma aceitação daquilo que para o mundo é uma loucura.
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Porém, para o mundo ele já era louco, mesmo
tentando se adaptar. Arthur desabafa: “a pior parte de ter uma doença mental é
que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse". Ele
abraça a própria “sombra” e entra em conexão com tudo aquilo que reprimia,
sublimando tais emoções de maneira violenta. Isso fica bem explícito nos
questionamentos do personagem durante uma entrevista em um programa de TV:
“Quem diz o que é normal? Quem diz o que é loucura? Quem diz o que é engraçado?
Eu pensava que minha vida fosse uma tragédia. Agora me dou conta de que é uma
comédia".
Assim, nas narrativas expõe-se a ideia de que para viver o
seu “eu real”, despido de “máscaras” sociais, somos reprimidos acerca de nossos
desejos instintuais e naturais, o que, invariavelmente, contribui com nossa
ruína em uma cultura normatizada, uma vez que nossa subjetividade (ou seja,
nossa existência enquanto ser único e potencial) é aniquilada em função do
olhar institucional padronizante.
Inúmeras obras
audiovisuais, entre outros meios de expressão artística, por constituírem-se
intrinsecamente de formas de representar o mundo e refletir assim o contexto em
que estão localizadas, trazem consigo diversas visões de mundo, preocupações
sociais e orientações ideológicas. Tais obras perduram como testemunhas
históricas do seu tempo e podem ser analisadas com a finalidade de trazer
informações muitas vezes ocultas em documentos oficiais.
A arte como contestação
do status quo, em determinados momentos, teve que estar inserida no
sistema para poder questioná-lo, algumas vezes com consciência e eficiência, outras
não. Como o louco que nos aponta a sanidade da civilização ou a falta dela,
esses questionamentos vindos de dentro, já dominados e cooptados pela indústria,
reafirmam a ideia de que para existir, por exemplo, o “excêntrico” é
necessária, a priori, a existência (ou a concepção) de um “centro” normatizado
contrastante, que só é possível ser questionado a partir das ferramentas,
elementos e recursos associados a tal. Por outro lado, só podemos reconhecer o
quanto o ambiente em que estamos nos faz mal, saindo dele. (“Só se pode ver a
ilha se sairmos da ilha”, nas ideias de Saramago).
Portanto, uma questão que
permeia as três obras talvez seja sobre a famigerada ideia de liberdade. A liberdade
em essência, aquela utópica, rousseauniana, que perdemos quando vivemos
enquadrados à regulação do sistema. Aquela dos outros animais, que não do ser
humano. Algumas perguntas inconscientes que os personagens desses filmes
despertam são: quero ser livre, o máximo possível, ou quero voltar a ser mais
uma engrenagem no sistema, quantificado? Qual o preço que se paga por ser
livre? O que é a felicidade? O que é ser feliz em uma sociedade que não está
interessada nisso, uma vez que a felicidade não gera lucro? Tais reflexões
coadunam com as visões de Byung-Chul Han, referentes a sobrecarga que sofremos/nos
impomos na sociedade atual e também à Jonathan Crary na ideia de que o sono é
um dos grandes meios ainda de resistência em uma sociedade ligada ao consumo:
24 horas por dia, 7 dias por semana.
A desumanização da
sociedade e a ruína das clássicas instituições de controle transformadas pelo
aumento da dependência extrema pela tecnologia, exalta, através da comunicação
em massa, uma falsa felicidade do “ter” acima do “ser”, aprisionando-nos
voluntariamente ao padrão. Essa relação doentia e de autoflagelo que é
extensamente abordada nos filmes.
Bacurau, de Kléber Mendonça Filho |
A resistência também é
outro tema importante, que tece um fio de ligação entre os três filmes. Ao
mesmo tempo que evidenciam o problema, apresentam possibilidades de libertação.
A resistência é contra a noção de uma padronização do nosso bem mais precioso:
o tempo. A exaltação de subjetividades e ritmos de vida diferentes,
desenquadrados ao institucional, vivendo e se impondo em outros tempos.
Humanizados em sua loucura e monstruoso perante o que é enquadrado. A
contestação pelo tempo vivido, pelo momento usufruído, pela transcendência na
relação com o mundo, talvez seja mesmo a última fronteira, como previa Crary,
da resistência. A refutação da lógica da positividade como único meio de
felicidade, em uma sociedade que prega que podemos tudo ("yes we
can") e na verdade não podemos nada, pois estamos quebrados
financeiramente, fisicamente e psico-emocionalmente, expostos a frustrações
causadas pela alta expectativa de “vencer na vida”. Uma vida cada vez mais cara
e excludente. Um ciclo vicioso que nos prende ao sistema. A mecanização das
relações e o esvaziamento da empatia pela individualização e pelo egoísmo
impregnados culturalmente. A invisibilidade do "outro", do diferente,
do não-enquadrado, do que não pode oferecer lucro ou qualquer coisa além da
própria subjetividade. A invisibilidade de todos nós, avassaladora maioria da
população, que não detém os meios de produção. A importância da contestação de
utopias que não são nossas. A ideia de que a utopia da natureza é a nossa
distopia, e vice-versa. Se o nosso habitat natural se tornou estranho (a natureza
como alegoria do estranho), seria ainda nosso habitat natural? Seríamos ainda
animais ou já nos tornamos máquinas? Estamos ainda integrados ao planeta? Seria
o fim do humanismo? Afinal, quem é o louco? Os que alegram os reis com o
intuito de virar reis e ser alegrado por outros bobos? Ou os que “aniquilam” os
"reis" de forma visceral e resistem, buscando novas formas de viver?
Resistência!
Assim, colocando em
perspectiva, é interessante pensar estes fenômenos enquanto representação de
reflexões acerca das relações humanas atuais, lidando com a arte como outras
formas de interpretar o mundo que habitamos e com a intenção de se deparar
conscientemente (ou não) com a realidade e a complexidade das coisas externas e
internas ao pensamento humano, exibindo suas hipocrisias, contradições e
convulsões cobertas e podadas pela moral social. A arte como resistência, mesmo
que inserida, como no caso do Coringa, no sistema. A arte que corrói, de
dentro pra fora expondo as vísceras. A arte é o que incomoda.
E quem pode garantir que
tudo que ali se passa nos filmes nada mais é que uma extensa alucinação dos
personagens? Tanto em Bacurau, quanto em Sem Retorno e em Coringa,
as narrativas nos abrem brechas para tal devaneio, na maneira como são
utilizadas a linguagem cinematográfica e como são conduzidas as narrativas com
elementos alucinógenos (Bacurau), oníricos (Sem Retorno) e de
delírios mentais (Coringa). Tudo aquilo pode não passar de alucinações
dos personagens dentro das narrativas, assim como são para nós enquanto
espectadores ou, como diria Méliès, sonhadores acordados sentados imersos na
sala de cinema.
O que fica, afinal, é a
reflexão de que a arte e os artistas podem operar como medidores bem precisos
dos fenômenos que abalam o imaginário social. O que as vezes pode escapar em
relação a tudo isso é a percepção de que tais representações ilustram, como um
espelho, nossa própria face frente ao mundo e ao que não concordamos ou é
destoante de nossos valores pessoais. Isso pode ser problemático e desencadear
exaltações como as vistas em algumas situações nos lançamentos destes e de
outros filmes, pois traz à tona hipocrisias que teimamos em carregar.
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