Não há outro caminho além da Resistência
Roberto Franco
(Cozinheiro, costureiro, escritor, realizador e
antifascista.)
A obra
MekHanTropia é um álbum indispensável àqueles que buscam reflexões e
pensamentos que possam sustentar o difícil exercício de compreensão da
realidade. Muitas faíscas reverberam meu estoque de questionamentos e mais
ainda de motivações. Não há outro caminho além da Resistência.
De
fácil assimilação, o conceito da MekHanTropia estabelece em síntese a
ressignificação do homem enquanto máquina. Não propriamente o romantizado e
poético ciborgue do imaginário sci-fi, alimento cultural de gerações que por
décadas representou da literatura ao cinema o arquétipo de futuro tecnológico e
a simbiose orgânica/mecânica. O MekHanTropo é por si um indivíduo biológico
construído mentalmente pela mão do Estado em consonância com interesses de
ordem econômica; como um títere do capitalismo. Um ser subjetivamente acéfalo,
moldado em sua psique para repetir desenfreadamente padrões de pensamento
antinaturais que valorizam o comportamento de manada. Tudo em benefício de
interesses econômicos, políticos e de poder. O mekHanTropo, em escalas variáveis,
somos nós. Prisioneiros tecnológicos de nossa própria vaidade.
Em
detalhes
Ao
longo da última década vivenciamos uma revolução tecnológica avassaladora.
Através da Rede tivemos nossa existência funcional revirada do avesso. Da forma
como nos comunicamos, dos perfis – físicos e psicológicos – que construímos de
nós mesmos, das opções e escolhas de consumo (dos bens de consumo propriamente
ditos aos padrões de valorização e aprovação do que nos é oferecido pela
indústria cultural). Enfim, tudo que nos formata como referência de existência
além da virtual. Diante dos significados da MekHanTropia, é factível afirmar
que uma sólida fração do que hoje pauta quem somos e como pensamos faz parte de
uma construção em escala global e de relevância histórica da apropriação dos
meios tecnológicos como instrumentos de uma guerra invisível que mira e acerta
em cheio o seu objetivo: a recolonização.
Há
décadas a evolução tecnológica possibilitou a forma como povos e nações se
integraram. Uma evidente consequência desta dinâmica foi o crescimento
econômico de nações que ao longo dos séculos foram apropriadas por países
imperialistas. E deste cenário surgiu o que, sobretudo na última década,
ocorreu debaixo de nossos narizes e que se fundamentou como base para os dias
de terror neofascista e fundamentalista que vivemos hoje. Um elaborado e bem
executado plano de reengenharia social que, como se envolto por um verniz de
invisibilidade, transcorreu sem grandes obstáculos. Cenários políticos
conflituosos em diversos países que emergiram e construíram relativa
autossuficiência, tensões sociais forjadas que desestruturaram governos de viés
progressista e romperam o véu da coerência. Muitos exercícios jornalísticos de
investigação passaram a ser desacreditados e associados a factoides
conspiracionistas quando trataram de temas como guerra híbrida ou a influência
de grupos econômicos sobre as lideranças políticas das nações. Apesar de
relações complexas e um quê hollywoodiano em tais tramas, relacionar este tipo
realidade ao perfil das fake news e conspirações neofascistas que abundam o
universo informacional do brasileiro hoje é, no melhor cenário, uma ironia.
O que
vivemos além dos ocultos jogos de poder que certamente não serão ventilados na
imprensa mundial e o que está em jogo é mais do que interesses de poder
econômico e subjugação de um pensamento progressista a um reacionário. É a
ressignificação do indivíduo, a transmutação de suas principais referências
naturais e sociais claramente instintivas a um mecanismo (des)intelectual. É a
busca pela construção de comunidades previsíveis, subjugadas e pacíficas como
parte da engrenagem de dominação e controle. Trata-se da instrumentalização das
ferramentas tecnológicas que ressignificaram a forma que vivemos e nos
relacionamos. Um emprego violento e militarizado dessas estruturas tecnológicas
buscando condicionar pensamentos coletivos.
A
mekHanTropia que me ameaça é aquela que atinge a todos. A que por uso de
ferramentas massivas de comunicação/socialização/existência virtual ressignificou
no pensamento social conceitos antes vistos como primários, individuais e
sociais. Com o objetivo principal de dominação, controle e subjugação. Essa
relação entre a geopolítica e a MekHanTropia, apresentada aqui de forma
superficial, é concreta e absolutamente indissociável. A transformação de
valores mercantis sob a ótica do moribundo ultra neoliberalismo em um novo
padrão de pensamento no imaginário coletivo popular faz com que olhares
maniqueístas de complexidade medieval sejam a pauta dos debates e discussões em
redes sociais por indivíduos que não tiveram acesso aos mais elementares
aspectos conceituais de temas como livre mercado, liberdades individuais ou até
mesmo o comunismo histórico.
Iludido
pela certeza inserida artificialmente em suas convicções, o mekHanTropo se
integra enquanto engrenagem na máquina de controle do Estado sobre os
indivíduos. Cego pela vaidade da aprovação de seus pares, consolida a
destruição não apenas de sua própria existência (física, psicológica e social)
mas também do meio ambiente.
Retomando
a perspectiva da obra, o MekHanTropo pode ser descrito como um sujeito social
que aniquila a ideia de sua própria essência. Tanto em sua capacidade de se
conectar com outro quanto em sua capacidade de se perceber parte da natureza.
Não habita nele a natureza, habita nele a programação recorrente e continuada que recebe e sequer imagina. Legitima o discurso imposto e distorce sua própria
compreensão de si e de seus instintos naturais comuns a outras espécies como a
autopreservação.
Aprisionado
na fantasia de viver em um futuro utópico de harmonia mediada pela tecnologia
(uma fanfic personalista sobre o capitalista que acredita ser), o
MekHanTropo se fortalece pela estupidez alheia, todos dependurados uns aos
outros e a um pensamento de capitalismo de salvação e suas falsas benesses. Não
há distopia que não se erga sobre a ilusão de uma utopia.
Por
isso, ao analisar as atuais políticas de estrutura neofascista e
fundamentalista que por meio do voto chegaram ao poder em diversos países,
alguns pontos narrativos e de discurso comuns entre si ficam evidentes.
Sobretudo quando justificam a barbárie com temas como liberdades individuais. A
Legitimação de personalidades que há uma década eram desprezadas pela própria
insignificância diz muito e muito claramente sobre o sucesso da empreitada de
desumanização do indivíduo comum, reflexivo, conectado com a natureza e
consigo.
Vivemos sim dias de trevas, caro Fredé, e não há horizonte de transformação. A Obra MekHanTropia me impactou tão positivamente quando entendi sua proposta mais ampla: a provocação. Ao autoconhecimento, ao exercício cotidiano de reflexão sobre pensamentos e ações. Sobre o que somos, o que consumimos, como nos relacionamos. E, mais importante, como conseguiremos nos ressignificar, voluntaria e conscientemente, depois de termos sido todos ressignificados artificialmente pela máquina tecnológica de consumo e de comportamentos, de fora pra dentro.
A
Resistência começa de dentro pra fora.
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