Assim como existem
profetas que ditam que a música em formato físico e compilada em álbuns está
morta, há quem diga que o cinema está com os dias contados e que as novas
plataformas midiáticas irão tomar conta dos meios de produção audiovisuais.
Porém, na contramão destes seres apocalípticos midiáticos, o fato é que os
meios artísticos, expressivos, narrativos e comunicacionais não necessariamente
se extinguem ou se anulam devido a novas descobertas e avanços tecnológicos, ao
contrário, transformam-se, se adequando ao contexto social que se encontram.
Desta forma, as linguagens
se misturam, se hibridizam, o que possibilita novas possibilidades de leitura e
interação entre a emissão da mensagem e sua recepção. A pintura não viu seu fim
com o surgimento da fotografia, assim como o teatro não acabou com o advento do
cinema, e, atualmente, temos diversas linguagens permeando e comunicando entre
si por diversos meios. O computador é um desses meios, uma “metamídia” que
aglutina e mistura digitalmente diferentes linguagens, tendo hoje como aliada a
rede internet, que nos possibilita algumas facilidades em relação ao acesso e
contato com obras audiovisuais de diversas partes do mundo e de diferentes
épocas em segundos.
As representações
artísticas e midiáticas executadas por meio de máquinas e softwares buscam,
geralmente, operar com a ilusão sobre os nossos sentidos. Seja um filme, um
game, ou uma série, tais fenômenos agem, de forma geral, no sentido de provocar
nossa imaginação, gerando uma sensibilidade aparente que nada mais é que uma
peça pregada em nós mesmos. Nessa relação, atuamos como uma espécie de
re-decodificador de informações digitais abstratas provocadas por meio da
tecnologia e aguçadas em nossa mente por meio da imaginação.
Inúmeros filmes, videoclipes,
pinturas, personagens, histórias em quadrinhos, entre outros meios de expressão
e linguagem artística, por constituírem-se como uma forma de representação e
refletirem assim o contexto em que estão localizados, trazem consigo diferentes
visões de mundo, preocupações sociais e orientações ideológicas. Tais obras
perduram como “recortes” e testemunhas históricas do seu tempo e podem ser
analisadas com a finalidade de descortinar informações muitas vezes ocultas em
documentos oficiais.
Neste sentido, as
tecnologias nos servem, enquanto espectadores de histórias, para ampliar nossa
imaginação, buscando novas possibilidades de comunicação entre diferentes
contextos e linguagens. A Netflix, conhecida plataforma on-line de filmes e
séries, em parceria com o canal de TV norte-americano Showtime, nos apresentou, desde 2017, a possibilidade de contato
com essa relação entre contextos diferentes com a continuação de uma obra-prima
que supostamente havia se encerrado há cerca de 25 anos: Twin Peaks, do diretor David Lynch, que entre outros trabalhos,
assinou Veludo Azul, A Cidade dos Sonhos, Eraserhead e A Estrada Perdida.
Twin
Peaks foi uma série de sucesso no início da década de 1990,
e que agora volta, em 2017, com os mesmos atores de mais de duas décadas atrás,
dando prosseguimento – fato previsto na segunda temporada, quando a personagem
Laura Palmer diz ao agente Dale Cooper: “Te vejo em 25 anos” – a história da
investigação de um assassinato em uma pequena cidade norte-americana e suas
peculiaridades com personagens estranhos e excêntricos, além de uma trama que
alterna momentos de suspense, drama, policial, comédia, terror e surrealismo,
destoando de produções narrativas teleológicas padrões, com início, meio e fim.
A obra aborda, por meio
da representação, nossa sociedade idiotizada, alicerceada pelos pilares da
grana, do status e do poder e, por
outro lado, propõe níveis filosóficos de abstração do pensamento e da matéria,
elevando a reflexão a aspectos metafísicos e metalinguísticos com o próprio
universo precedente da narrativa e com o audiovisual e a cultura pop, de forma
geral, atingindo questões sobre o que somos e qual a nossa importância no
planeta por meio de nossas ações.
Além da série, o
universo ficcional de Twin Peaks
também se imbrica no longa-metragem intitulado Twin Peaks: os últimos dias de Laura Palmer, de 1992, o que provoca
uma expansão da obra e pode se enquadrar em uma relação transmidiática no que
tange à narrativa original das duas primeiras temporadas da série televisiva e,
agora, da terceira temporada, também chamada de Twin Peaks: The Return.
Nesta última temporada,
ao vislumbrar o futuro pelo passado (em 1991, quando a segunda temporada da
série acaba) e retomando esse passado em uma nova configuração no futuro em
relação àquele contexto anterior (ou seja, o agora), o diretor reflete sobre a
sociedade atual e os caminhos que trilhamos desde então com nossos valores
culturais ocidentais expostos em uma viagem estética e narrativa surrealista por
diferentes dimensões que nos deixa atônitos e extasiados.
Um fato interessante é
a maneira como o diretor lida com os cenários, alguns revisitados das outras
produções de Twin Peaks e outros
novos e exclusivos desta nova produção, trazendo assim uma ideia de contraste
entre o conforto do espectador habitual em saber onde está localizado e a angústia/surpresa
decorrente da exploração de novos ambientes. Destaque aqui ao pub The Roadhouse, o qual abriga
apresentações de diversos músicos como a banda Nine Inch Nails, Eddie Vedder,
entre outros, e estabelece fechamentos geniais para cada episódio da temporada.
A arte audiovisual
proposta aqui se mostra arrebatadora na expansão de nossa imaginação e traduz
bem o estilo de Lynch, que o consagrou e o marcou. As inúmeras transformações
pelas quais passamos cotidianamente vêm à tona assistindo ao seriado. O vazio
existencial que eventualmente pode consumir nossas verdades e as formas que
lidamos com essas verdades absolutas estão ali representadas e questionadas em Twin Peaks, com uma poética intrigante
típica do diretor. “Estamos no futuro ou estamos no passado?”, ou “Somos como o
sonhador que sonha e depois vive dentro do sonho. Mas quem é o sonhador?”, são
algumas questões existenciais levantadas na trama. Além da parte visual que é
esplêndida, com suas cores e texturas, o uso das pausas e do som como meio
narrativo também provoca uma grotesca sensação de tensão e estranhamento ao
longo dos 18 episódios desse retorno.
É possível assistir a
nova temporada de Twin Peaks sem ter
assistido às outras produções referentes a este universo (não disponíveis na
Netflix), porém, assim perde-se boa parte do contexto e das conexões com lacunas
anteriormente abertas na obra, como detalhes estéticos e narrativos na
mise-en-scène que possibilitam agora ao espectador atingir outros níveis de
percepção.
Sugiro que, ao assistir
a série, procure se desvincular de amarras estéticas e narrativas
pré-concebidas. Deixe-se fluir nas lacunas oferecidas aos seus sentidos,
auditivos e visuais. Adentre as articulações artísticas e referências propostas
na obra. Abra-se para a reflexão por diferentes pontos de vista sobre a vida
que leva e que é exposta. Twin Peaks traz
a arte no sentido puro de materializar experiências intangíveis de forma a
excitar nossas memórias sensoriais, rompendo com padrões e transcendendo,
muitas vezes, nossa percepção do tempo, do espaço e sobre nós mesmos, de uma
maneira única e completamente sensorial e até abstrata. Twin Peaks é, antes de tudo, uma obra onde o “sentir” vem antes que
o “compreender”. Ademais, mergulhe fundo na obra desse genial cineasta e sonhe
acordado e sem limites com suas fantásticas produções. Até a próxima aventura!