Cani Buiu
Oracle e os ecos dispersos transmidiáticos de memórias e
imaginários interseccionados
(Artigo acadêmico escrito em 2022 para o Evento CIACT (Congresso internacional de arte, CIÊNCIA e tecnologia organizado pelo labfront - UEMG/Brasil)
Dr. Frederico Carvalho
Felipe (UFG)
INTRODUÇÃO
Ao cursar a disciplina de “Arte e
Tecnologia” no PPGACV-UFG, ministrada pelo prof. Dr. Edgar Franco, criei um
projeto de jogo intitulado “Cani Buiu Oracle”, ambientado no universo onírico
ficcional transmídia de MekHanTropia que venho desenvolvendo em meu
doutorado. Esse jogo foi baseado, experimentalmente, na lógica operacional do
clássico jogo da memória, no qual o objetivo é formar pares iguais ao virar
cartas distribuídas no tabuleiro. Assim, adentro conceitos de revelação,
leitura, apropriação, fragmentação e reflexão sobre arquétipos e aspectos
inconscientes da psique e da sociedade. Para melhor ambientar esse jogo em MekHanTropia,
de acordo com os conceitos que venho trabalhando em minha tese-criação,
estabeleço relações híbridas ascottianas (ASCOTT, 2009) entre as dimensões de
Realidade Validada (ordinária, cotidiana), de Realidade Vegetal (ancestral,
lúdica, ritual) e de Realidade Virtual (redes e fluxos digitais), expandindo
transmidiáticamente por meio dos QR codes revelados pelas cartas e
pensando sobre as sombras junguianas (JUNG, 2015) e a psicopolítica atual (HAN,
2018) em busca de resistência e reexistência pelo autoconhecimento.
A princípio, o jogo foi pensado,
criado e apresentado em formato digital, construído no programa PowerPoint. Por
nunca ter criado um jogo, quis me desafiar a experimentar esse tipo de
linguagem e representação artística e, assim, estabelecer uma expansão
transmidiática ao universo que estou produzindo/conduzindo. Para isso tive que refletir
e testar elementos formais e conceituais que compõem e dão vida a um jogo de
forma geral e, especificamente, aos jogos da memória. A primeira e elementar
questão que me veio foi: Por que um jogo da memória? Por utilizar o universo de
MekHanTropia para pensar acerca das relações de intencionalidade sobre
representações que envolvem arte e tecnologia e imbricam a percepção, a
imaginação e a memória, pensei que um jogo desse tipo traria, de maneira
intrínseca, tais relações conceituais, que poderiam ser tratadas em forma de
alternativa e percurso pelas narrativas desse universo.
A ideia não era pensar apenas sobre
a interioridade dos sujeitos, mas, sobretudo, acerca das relações diversas
experienciadas por cada um no mundo, em um distanciamento da rigidez das
substâncias em si e uma aproximação de conexões, relações e representações
entre elas.
Segundo Han (2019, p. 100), “o
mundo é mais propriamente uma rede do que um ‘ser’”, ou seja, mais movimento
que permanência, mais relação que isolamento. Em meio aos hiperfluxos
hiperinformacionais atuais, busco trazer um olhar sobre as relações entre o
próprio ser e seu mundo subjetivo (interno e externo) intermediado e
hiperdependente, atualmente, das tecnologias digitais, constituindo poéticamente
uma rede de articulação que transcende a essência estanque de narrativas
fechadas e, a partir de expansões transmidiáticas, percorre questões, caminhos
e idiossincrasias distintas e integradas ao si-mesmo, ao outro e ao contexto
representado pelo universo de MekHanTropia.
JANELAS E ESPELHOS
Parto de reflexões sobre as
dispersões apresentadas como conexões na hipercultura atualmente e novas
possibilidades poéticas e narrativas. Segundo Han (2019), o modo hipertextual
de experiência que temos com as redes e fluxos tecnológicos digitais, nos abre
diversas possibilidades de experienciar o mundo e nos permite escolhas de
maneira mais ativa, sem um ordenamento teleológico de sentido passivo e previamente
traçado. Han associa metaforicamente essas experiências hipertextuais a janelas
que se abrem:
O mundo é um tipo
‘windowing hypertext’ (hipertexto de janelas). Janelas são entradas em
um universo hipertextual. A experiência do mundo repousa no ‘step trhough
the window’ (dar um passo através da janela).(...) Windowing é, portanto, o modo hipertextual da experiência. Abre o
mundo. Nesse universo hipertextual não há unidades isoladas para si, nenhum ‘subjects’
(sujeito) mais, portanto. Tudo espelha uns aos outros e pode transparecer outro
em si.(...) No universo hipertextual nada é monadologicamente cerrado. Não há
‘sujeitos’. O habitante do universo hipertextual seria uma espécie de
essência-janela feita de windows
pelas quais capta o mundo (HAN, 2019, p. 83-85).
Assim, os QR codes presentes
no jogo operam como essas janelas a serem abertas hipertextualmente,
transcendendo os sujeitos (jogador/interator e criador/artista) e o inserindo
no todo comum de MekHanTropia, com ideias de tempos e de espaços
ordinários que ali se fragmentam narrativamente. Porém, pelos contatos entre as
“paisagens” (obras a serem acessadas) coloridas – codificadas nessas “janelas”
(Cartas/QR Codes) em preto e branco – e as memórias, percepções e ecos
da imaginação que eclodem dessa relação, podem se formar narrativas dispersas
que escapam de padrões teleológicos unitários de sentido, estabelecendo novos
tráfegos poéticos de fruição pelos hiperespaços-tempos mekhantrópicos.
Essas “janelas” são essenciais
enquanto operacionalidade conceitual em meu universo transmídia, pois abre a
narrativa à expansão e infinitas possibilidades de conexões, além de amarrar as
obras do universo e representar poeticamente uma ilusão de liberdade de ir e
vir por MekHanTropia. Neste sentido,
Han (2019, p. 131) tece relações entre as ideias de liberdade em pensamentos de
Nietzsche (na figura do andarilho) e o mundo atual caracterizado pela figura do
“turista hipercultural”. Segundo Han, Nietzsche teoriza sobre um sujeito que ainda
“andarilha em um mundo des-teleologizado, des-teologizado, ou seja,
des-localizado. Porque não está a caminho de ‘uma meta final’, pode pela
primeira vez olhar ao redor.” (HAN,
2019, p. 131-132). Portanto, o sujeito nietzschiano seria um homo liber por não estar preso a uma
ideia de “horizonte único”, ou seja, não ter um objetivo ou meta previamente
definida, libertando-o do que está além do agora, além do instante em que olha
ao redor e vê, então, novas possibilidades a serem exploradas. Desta forma,
“essa hipervisão é o resultado da nova liberdade conquistada” (HAN, 2019, p.
132) pelo andarilho que se projeta por meio de suas próprias visões, ampliando
seu universo.
Já o dito “turista hipercultural”
se diferencia desse andarilho nietzschiano, para Han, pela sua ausência do
“modo de andar vagaroso” (HAN, 2019, p.132). O mundo do “turista hipercultural”
não possui os “desertos e abismos” que permeiam o vislumbre de Nietzsche e
forçam o seu andarilho a se transmutar a partir do contato consigo mesmo e suas
sombras. Na hipercultura, as sombras são, muitas vezes, diluídas pelos
algoritmos da desfactualização e, portanto, negadas, ocultadas ou despercebidas
de maneira intencional.
Por seu aspecto não tão agradável –
especialmente em um mundo calcado em discursos fundados na positividade do
“tudo poder” –, as sombras são tidas como obstáculos aos ideais de felicidade
vendidos pelo mercado. Além disso, as máscaras dos avatares nas redes oferecem
uma ilusão de que ali “tudo posso”, o que reflete a ideia do “espelho” narcísico.
Em contraponto às “janelas”, que abrem para novos mundos e possibilidades, as
redes, como “espelhos”, refletem o próprio em suas bolhas de concordância que
suprimem a alteridade: “O espelho não é aberto. É, na verdade, uma contrafigura
da janela, da window. Reflete o
próprio. Nisso consiste sua interioridade” (HAN, 2019, p. 143).
O jogo então toca nessas duas faces
conceituais: a do “andarilho” que se permite conectar-se às reflexões que ali
podem ser estabelecidas entre os diversos caminhos que as expansões
transmidiáticas do jogo oferecem, sem um objetivo previamente definido, mas com
um olhar mais curioso e voltado para compreensão de si ao acessar as janelas
como portais de reflexão; ou a do “turista hipercultural” que passa por ali
como um homo doloris que olha apenas
para fora de si, fechado para a compreensão e repleto de ressentimentos e
certezas narcísicas, sem se conectar com o “outro”, ou seja, mekhantropomorfizado
em espelhos que devolvem suas “fantasias de repetição”.
CONEXÕES, DISPERSÕES, ILUSÕES E
APROPRIAÇÕES
Os poderes lúdicos e relacionais do
jogo são muito importantes para o desenvolvimento da minha subjetividade
enquanto criador, atuando fundamentalmente nas tomadas de decisão poética,
reflexão e aumento de repertório e deslocamentos de mim mesmo com quem se
dispõe a jogar. Mesmo que sem contato físico direto, abrem-se, pelas nuances
das obras, diferentes encontros e formas transcendentes de existir e se
relacionar com os signos oferecidos. Conexões formadas pelo que restou (enquanto
índice ou resquício conceitual) de cada obra dispersa nesse universo.
O jogo, de forma geral, possui a
característica de amarrar essas diversas partes do universo que crio,
possibilitando que haja uma fruição do interator por minhas produções
artísticas, fazendo suas próprias conexões. Há ainda a possibilidade de
compartilhar o trajeto e dialogar comigo enquanto criador sobre essas
experiências por meio de um e-mail criado exclusivamente para o jogo, com a
intenção de receber os depoimentos e impressões e vislumbrar narrativas dentro
desse universo. Este recurso serve também para que eu possa enviar o arquivo do
protótipo em PowerPoint para quem se interessar em jogar. Nas instruções
do jogo, presentes no tabuleiro, há a orientação para que as pessoas anotem as
ordens das cartas reveladas e enviem para o e-mail canibuiuoracle@gmail.com, para que então possamos dialogar,
expandir as reflexões e experiências sobre cada caminho subjetivo, prezando
mais pelas dúvidas que pelas certezas.
Por estabelecer diversas relações
de interação, ligação e (re)significação entre elementos para que possa
acontecer, o jogo funciona como um mediador de experiências e narrativas
subjetivas imprevisíveis dentro desse universo. O jogador é situado no centro de
sua jornada enquanto performer/personagem, numa relação de causa e
efeito a partir de suas ações que dão direcionamentos narrativos a fragmentos
que antes aparentavam estar dispersos.
TRANSCENDÊNCIAS E REEXISTÊNCIAS
Essas projeções articuladas por
meio das cartas, do tabuleiro, da trilha sonora, dos QR codes, dos
vídeos, das descrições e, sobretudo, das ressignificações existenciais e
narrativas provocadas enquanto representação artística da obra, funcionam como
formas de reexistir nos mundos (ordinário e extraordinário) e transmutar os
padrões estabelecidos institucionalmente.
Pela fantasia da imaginação, nos
tornamos mais próximos ao nosso interior ao estabelecer conexões subjetivas com
o que achamos que somos/estamos em determinado momento, podendo repensar
aspectos culturalmente institucionalizados. O formato digital ajuda a ampliar o
alcance dessas relações e contatos, transcendendo e ressignificando tempos e
espaços.
Como coloca Han (2019)
especialmente para a cultura oriental, a humanidade não é uma “substância”
fechada ou solidificada, mas sim uma “relação” que acontece pela modificação em
essência pelos contatos, como na química. Segundo ele, “Categorias ocidentais
como intersubjetividade ou interpessoalidade, que poderiam provocar apenas
posteriormente uma relação entre as pessoas ou sujeitos, são estranhas ao
pensamento do Extremo Oriente.” (p. 98-99).
Han explica que no ocidente há uma
ideia de interioridade mais rígida que no mundo oriental, que é mais permeável
e aberta. O pensador exemplifica dizendo que a própria palavra “cultura”, para
alguns orientais, provém de conceitos absorvidos do ocidente. A palavra chinesa
para “cultura” (wen-hua) conflui significados até contrastantes, como “padrão”
e “mudança/transformação”. Para ele, “Antes
de qualquer inter, os humanos são um entre”
(HAN, 2019, p. 99).
Essa é a função essencial dessa
obra enquanto oráculo: proporcionar um olhar mais voltado a questões interiores,
mas, sobretudo, levantar reflexões sobre nossas subjetividades e relações com o
diverso no mundo, pela fantasia desse universo. Essas relações com o
autoconhecimento pelos elos entre as obras ajudam a formar esses “entres” e
operam para o acesso aos “inter” colocados por Han. Na medida que o jogador se
aprofunda nas obras, pode se conhecer melhor e transbordar os limites extraordinários do jogo, acessando
questões até sobre o futuro, em suas vidas ordinárias.
Isso também ocorre com os sonhos,
segundo Sidarta Ribeiro (2019):
Em
contraste com a ampla maioria dos outros animais, temos enorme capacidade de
simular futuros possíveis com base nas memórias do passado. Podemos realizar
atividades motoras bastante complexas e precisas enquanto a mente devaneia sem
limites nem amarras em imagens e situações de todo o tipo, em qualquer escala
de tempo e espaço – exatamente como nos sonhos, mas com muito menos intensidade
(RIBEIRO, 2019, p. 37).
Os processos oníricos mentais são,
nesse sentido, parecidos com os processos da imaginação em vigília, o que
proporcionou ao ser humano, durante eras, melhor adaptação e compreensão sobre
as vicissitudes da existência. De um tempo pra cá, a atenção ao sonho vem cada
vez mais diminuindo, o que, segundo o autor, é problemático, uma vez que
interfere em nossa configuração de realidade e sobrevivência psíquica no
presente.
O aspecto lúdico da psique é
fundamental para nossa existência. Segundo Huizinga (2019, p. 6), “ao dar
expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado da
natureza.” Como
quando estamos sonhando, ao
nos ambientar em um mundo fantástico, estamos submetidos às “regras” desse jogo
e também às ilusões que são geradas de acordo com os elementos propostos, nos
projetando para aquela realidade que, por vezes, é diferente da que estamos
situados ordinariamente. Ao pensar nesses deslocamentos, pode-se observar que
também o sistema que chamamos de “realidade ordinária” procede dessa forma,
estabelecendo regimes de verdades que são absorvidos, normalizados e
normatizados pela cultura institucionalizada, ou seja, jogamos e somos jogados
culturalmente a todo momento.
Como vivemos no sistema neoliberal,
que se baseia fundamentalmente no lucro, na exploração, na produtividade, no
consumo e no mercado, nossa “realidade” ordinária funciona em razão disso.
Somos, nesse tabuleiro social, peças cujo objetivo primordial é fazer a máquina
neoliberal funcionar para gerar lucros. Segundo Han (2019):
Não
o vasto espaço do trans, mas a proximidade da justaposição espaçotemporal é o
que caracteriza a cultura atual. Não o multi ou o trans, mas o hiper
(acumulação, conectividade e condensação) caracterizam a essência da
globalização. (…) Em oposição a transculturalidade que, de modo evidente,
esteve e operou em todas as épocas, em todas as culturas, a hiperculturalidade
caracteriza a cultura de hoje (HAN,
2019, p. 104-105).
Imersos na práxis de apropriação
consumista de nossas relações, pagamos e somos produtos ao mesmo tempo
simplesmente por existir. Hipnotizados pelas time lines das redes e
expostos ao controle dos dados, já não há mais uma distinção sólida sobre o
“estar” ou “não-estar” exposto e vigiado na internet. O controle do ciberespaço
está em todo lugar e permeia nossas vidas cotidianas.
A ideia de “consumismo” é atrelada
a ter mais do que se necessita, em um processo que também gera uma cultura
atrelada à hipercompetição, induzindo demonstrações de poder na sociedade. O
consumo adentra camadas psicoemocionais dos indivíduos, em busca de uma
felicidade que nunca é alcançada ou saciada já que está sempre deslocada do
presente. Assim, há no núcleo existencial do sistema vigente uma “ideologia do
consumo” como um estilo de vida disseminado no qual não se vendem apenas
produtos, mas, de fato, valores que atacam os desejos. Até mesmo os valores que
podem ser contra o sistema, que muitas vezes surgem de maneira insurgente, são
cooptados em prol do consumo.
A sociedade de consumo tende, cada
vez mais, a seguir se transformando pelo
fluxo informacional ditado por conglomerados que operam o mundo. Estamos
constantemente conectados e multiplicados no tempo e espaço hipercultural,
mesmo em oposição ao sistema. Replicados em “zeros” e “uns” que contribuem para
alguém lucrar de alguma forma. Porém, à luz de Espinoza (remetido
por Han), os bons
encontros, as relações, o lúdico, as narrativas, entre outros, são fatores que
ainda nos despertam a potência do afeto, de sermos afetados, de agir, de
existir, de nos formar, de sermos humanos e refletir sobre o que nos cerca. “As
coisas das quais a gente se apropria, com as quais estamos rodeados, é que
fazem a diferença do conteúdo do self.
(...) A crítica do consumo pressupõe um interior profundo que valeria proteger
da superabundância de coisas exteriores.” (HAN, 2019, p. 109)
Logo, como diz Janet H. Murray
(2003), os deslocamentos fantasiosos a realidades alternativas nos permitem e provocam distanciamentos do sistema
quantificado do mercado, formando conexões com aspectos qualitativos da vida.
Tais relações possibilitam um equilíbrio frente as padronizações
institucionalizadas de hiperprodutividade:
Representar,
jogar e contar histórias estão intimamente ligados. Tal como a linguagem, são
componentes ancestrais e definidores de nossa humanidade. São também recursos
para as tarefas culturais que enfrentamos atualmente, especialmente para a de
viver numa comunidade global que traga compreensão e respeito mútuo através de
nossas múltiplas fronteiras culturais (MURRAY, 2003, p. 11).
No entanto, o sistema opera também
sobre as artes narrativas e utilizam seus recursos de maneira poderosa. Por
isso, penso nesse jogo, Cani Buiu Oracle, e na constituição
transmidiática do universo como um todo, não com intenções meramente
mercadológicas, mas como uma forma de acessar e transmutar questões de forma
visceral. Pensar sobre as cooptações pelas próprias narrativas, obras e
dispersões. Ao reconhecer, lançar luz e integrar essas questões à ponderação
reflexiva, tenho maior clareza sobre elas. Pela fragmentação transmidiática
desse universo, tento representar aspectos de ordenamento da sociedade atual,
espalhada, diversa e expandida, porém também submetida ao controle.
MEMÓRIA, DESLOCAMENTOS E
FRAGMENTAÇÕES
No jogo, as cartas distribuídas no
tabuleiro, enquanto ocultas, trazem (no verso) uma imagem feita por Edgar
Franco (a.k.a. Ciberpajé) de representação do ser fantástico Cão Breu,
como alusão à invocação dessa criatura crucial em meu universo, direcionando o
olhar às sombras junguianas pessoais e sociais do interator. Ao
abrir/revelar as cartas, ele se depara com QR codes que, ao olharmos pra
eles, não conseguimos decifrá-los cognitivamente de maneira espontânea ou
instantânea, uma vez que são códigos digitais que trazem links indexados que
devem ser lidos por máquinas. Parecem-nos, enquanto imagem, formas padronizadas
abstratas. Estabelecidas, em sua origem, para serem lidas utilizando
determinada ferramenta tecnológica (nesse caso a câmera do smartphone)
que, ao processar a leitura, já indicará os endereços eletrônicos a serem
acessados.
Tento representar esse pensamento
de maneira artística, visando as relações entre humano e máquina. Penso em transcendências
pelas tecnologias, “que amplificam nossos sentidos e nossa capacidade de
processar informações” (DOMINGUES, 1997, p. 15), como pontes para acessar os QR
codes, ou seja, o dispositivo tecnológico atua como uma extensão do corpo
humano, um portal transdimensional que abrirá as revelações que conduzirão o
jogo da memória/oráculo do Cão Breu (Cani Buiu). As imagens não são processadas
simplesmente pelo olhar, mas pela câmera que não vê apenas a imagem “externa”, mas como dados codificados “internamente” que
são então revelados pela máquina, possibilitando o acesso aos universos ali
ocultos, distintos de significação mesmo parecendo-se iguais a olho nu.
A metamorfose ciborgue inerente a
esses processos de por reengenharias de realidade e diálogos entre
humano-máquina na decodificação dos QR codes, utiliza-se da aparente
padronização para adentrar universos alternativos de representação. A
princípio, para a percepção da imagem, é preciso a tecnologia para poder
transmutar o que se apresenta aos sentidos e acessar as significações contidas.
Para isso necessita-se de um prolongamento ótico cognitivo tecnológico para que
a experiência se complete. Vamos imaginar que, num futuro hipotético, as
tecnologias como as conhecemos hoje não funcionem mais para decodificar tais
imagens. Nesse caso, perde-se a expansão conceitual de significação
primordialmente pensada para a obra e abre-se um resquício de representação que
não se completa funcionalmente, como hoje nos parecem alguns símbolos antigos
indecifrados, porém que permanece como elemento artístico-histórico-cultural.
Essas imagens de interface dos QR
codes funcionam como caminhos que apontam para outras imagens, como uma
espécie de “mapa do tesouro”, de comunicação poética e narrativa, codificado mekhanropofágicamente.
Assim, “as interfaces possibilitam a circulação de informações que podem ser
trocadas, negociadas, fazendo com que a arte deixe de ser um produto de mera
expressão do artista para se constituir num evento comunicacional” (DOMINGUES,
1997, p. 20).
Há uma relação direta dos
procedimentos artísticos com a essência humana de comunicar ideias e
transformar as experiências de maneiras diversas que transbordam as tradições
instituídas. A arte geralmente busca romper com os padrões ou normatizações
estipuladas e propor novas formas de experienciar a vida. Como um mago, o
artista opera signos de maneira intencional nos contextos culturais que
participa. Por meio de formas, contrastes, cores, luzes, sombras, texturas,
imbuí nessas operações a comunicação de ideias, conceitos, revelações, sigilos,
transmutações, ressignificações e caminhos de sentir e pensar sobre a
existência. A arte é também ligada aos contextos, e, por isso, crio pelos
fluxos eletrônicos e tecnologias que nos são acessíveis hoje variantes de
ressignificação de processos e relações que ocorrem também conforme as próprias
tecnologias se modificam, bem como as relações sociais que vivo.
Há implícito um questionamento
estético sobre os controles e deslocamentos da memória por aberturas de portais
para a imaginação na operacionalização e apresentação das cartas pelas figuras
do “Cão Breu sombrio” (quando a carta ainda está “fechada”) e do Cão Breu
esfumaçado (em alusão ao espelho de obsidiana e seus reflexos transtemporais,
quando o par da carta é encontrado e revelado). Também trago um olhar sobre a
hiperdependência tecnológica para os armazenamentos de dados, transferindo para
as redes o poder sobre a tangibilidade metamórfica das narrativas que
construímos durante a vida.
Isso dialoga com o pensamento de
Han sobre o “dataísmo” e a perda de liberdade que estamos condicionados no
mundo atual. Os dados armazenados em nossas memórias orgânicas (cerebrais)
estão sujeitos ao esquecimento, à remodelagens e reestruturações narrativas que
são fundamentais à nossa saúde mental. Com a transferência das memórias para as
máquinas, imortalizam-se os fatos impedindo-os de ser repensados, causando
dificuldades de autotransmutação e evolução, uma vez que o ato de esquecer
determinadas coisas é fundamental para o ser humano ressignificar o passado e
reviver o presente. A memória humana vista, freudianamente, como um organismo
vivo, enquanto a memória digital se configura como o oposto monstruoso dessa
vida:
A
memória humana é uma narração, uma narrativa para a qual o esquecimento é
essencial. A memória digital, por outro lado, é uma adição e acumulação sem
intervalos. Os dados armazenados são contáveis, não narráveis. (...) A memória
(humana) é um processo dinâmico e vivo em que diferentes períodos de tempo
interferem e se influenciam mutuamente. Está sujeita a transcrições e
reagrupamentos constantes (...) Assim, não existe o passado que se mantém igual e é recuperável da mesma forma. A
memória digital se constitui de momentos presentes indiferentes ou, por assim
dizer, de momentos zumbi. (...) A
temporalidade do digital é a dos mortos-vivos
(HAN, 2018a, p. 92-93).
O escape dessa relação monstruosa
se dá ao lançar luz sobre as sombras que assombram e, ao integrá-las sem
negação, observar nesses processos aspectos típicos da subjetividade que nos
tornam únicos. Esses contatos aparecem na obra por meio de reflexões sobre a
leitura das cartas do jogo/oráculo.
O ORÁCULO DO CÃO BREU
Os oráculos operam em diversas
sociedades (extintas ou não) como um espelho interior de onde eclode elementos
e questões essenciais do e ao si-mesmo. Essas relações trazem uma áurea
transcendental para tais artefatos. A transcendência, que pode ser aproximada
das ideias ascottianas de Realidade Vegetal, está presente no jogo Cani Buiu
Oracle em sua forma fragmentada de apresentação e leitura.
O funcionamento básico do jogo
acontece da seguinte maneira: 1) o jogador escolhe uma carta e a vira; 2) o
jogador vira outra carta e tenta formar um par a partir das leituras dos QR
codes. Ao se formarem pares, ou seja, ao ser lido pelo dispositivo o mesmo QR
code em duas diferentes cartas, o jogador acessa sua revelação contida no
link revelado; 3) Os links contém vídeos que, por si só, já dialogarão com as
subjetividades do jogador mas, além disso, nas descrições dos vídeos, por
escrito, existem textos que funcionam como expansões de significação
relacionadas às cartas do oráculo.
O jogo contém 13 cartas, formando
26 pares de revelação, sendo 12 pares de códigos idênticos e 1 conceitual,
formado por links distintos, mas que trazem o mesmo conceito de significação
(Dominar/Resignar) relacionado por mim, enquanto criador, e explicitados nas
descrições dos vídeos “Genocida”
e “O Messias de Rosemary”.
A escolha poética de manter esses dois vídeos como pares, mesmo sendo
códigos/links diferentes se deu em alusão ao contexto obscuro que passamos
atualmente no Brasil, com mais de 666 mil mortos pela pandemia. Uma maneira
de protestar contra a situação trágica
que passamos potencializada pela necropolítica instituída.
Os 13 pares representados se
relacionam com o arcano 13 do tarô (a “Morte”), que indica ideias de
renascimento, transformação e ciclos, como a luz que pode vir das sombras
atuais. Porém, como já dito, apesar de 13 pares, são 14 códigos/links (pois há
um par conceitual). O número 14 traz, ainda na relação com o tarô, a ideia da
“Temperança”, a busca do equilíbrio e o bom senso a partir do autoconhecimento.
Representa também as conexões entre o sol e a lua, entre o masculino e o
feminino, entre o superior transcendental e o inferior orgânico. Tais relações
de contraste e complementação me ajudaram a pensar
o conceito do jogo (e do meu universo de forma geral) acessando as nuances que
transcendem os maniqueísmos binários do “0” e “1” digital.
Ao fundo do tabuleiro há uma imagem
que intitulo como “Paisagem MekHanTrópica”, oriunda de uma foto feita da
janela do meu apartamento que foi posteriormente submetida a interferências da
Inteligência Artificial Deep Dream
Generator, fundindo a capa do álbum musical MekHanTropia à fotografia. Esse processo tem como intenção
representar as ilusões tratadas no universo ficcional.
Segundo Han, a janela tem duas
funções: “É primeiramente uma abertura ao exterior. Mas também ao mesmo tempo
protege do mundo, como uma tela. Como uma espécie de janela, a tela opera não
apenas revelando, mas também protegendo” (HAN, 2019, p. 86). A imagem “de lá de
fora” (fotografia da cidade) feita “de dentro” da janela processado em um
“lugar nenhum” desfactualizado (rede neural/IA) a partir de uma imagem que
também representa sons (a capa do álbum musical MekHanTropia). Assim, as ilusões postas pelo sistema se dão por
confluências de ideias condensadas a partir dos processos que contribuem para
gerar representação poética de ambientação contextual e conceitual do jogo, em
uma ilusão de segurança e proteção pelo tabuleiro.
Narrativamente, o jogo estabelece
relações com forças psíquicas ocultas de MekHanTropia e traz visões,
sugestões e experiências transcendentais aos personagens. Tais fenômenos os
fazem duvidar da
realidade ordinária e, por isso, tornam-se alvos do sistema. Esse oráculo atua,
na narrativa, como um artefato de resistência, para que possam compreender suas
histórias, acessando memórias por fragmentos oníricos que ainda estão dispersos
no dataísmo de MekHanTropia. Assim, cada vez que se joga Cani Buiu Oracle, além de olhar suas
próprias sombras refletidas nesse universo, também se dá vida a personagens e
fragmentos de suas histórias, podendo dar sentidos de resistência a eles.
Busquei nos 22 Arcanos Maiores do
Tarô o ponto de partida para as revelações das cartas codificadas pelos QR
Codes e tentei associar as ações relacionadas aos Arcanos com os vídeos,
condensando algumas delas em uma só revelação. Tais elementos são absorvidos em
minha obra a partir de sigilos mágickos, em uma relação fundamental de
construção de significação mística /poética atrelada ao universo ficcional.
Os Arcanos do Tarô e as indicações
de ação “energética” de revelação que estabeleci são:
O Louco (Revolucionar); O Mago
(Aspirar); A Sacerdotisa (Analisar); A Imperatriz (Desenvolver); O Imperador
(Controlar); O Sacerdote (Disciplinar); O Enamorado (Escolher); O Carro
(Direcionar); A Justiça (Ajustar); O Eremita (Pesquisar); A Roda da Fortuna
(Alterar); A Força (Dominar); O Pendurado (Resignar); A Morte (Modificar); A
Temperança (Reconciliar); O Diabo (Desejar); A Torre (Dissolver); A Estrela
(Harmonizar); A Lua (Expandir); O Sol (Triunfar); O Julgamento (Transcender); O
Mundo (Progredir). Extraí tais relações da leitura do tarô realizada por minha
mãe durante o processo de criação do jogo. Busquei adaptar experimentalmente
tais significações dela às minhas intenções poéticas em cada vídeo produzido
até então no meu universo, sem qualquer ordem numérica ou narrativa para essa
adaptação. Assim, o verbo
“Revolucionar”, por exemplo, relacionei à descrição do videoclipe da música
“Tentando Explicar o óbvio”, uma vez que tanto o vídeo quanto a música versam
sobre resistência e enfrentamento ao sistema pela iluminação do
autoconhecimento e da subjetividade/unicidade em oposição à padronizações
institucionalizadas, e assim por diante.
Os Diários de Quarentena, – que surgem em todas as descrições dos
vídeos relacionados ao jogo e em outras ocasiões como diálogos, músicas,
minicontos, etc. espalhados por todo o universo de MekHanTropia –, são reflexões feitas pelos personagens dentro da
narrativa. Esses diários são resquícios de sonhos, visões, memórias, diálogos,
experiências ou até mesmo devaneios da imaginação deles. A ideia é que eles
sirvam para plantar dúvidas sobre a lucidez dos personagens e, sobretudo,
questionar a realidade tanto do universo ficcional quanto a nossa própria,
validada por nós de maneira ordinária.
Por fim, a trilha sonora do jogo é
a música instrumental, composta e produzida por mim, intitulada “Mundo T(r)ela
(Deep Blue Animus Shine)”, presente no EP Ecos
Oníricos,
que traz hibridismos de música eletrônica com violão e vocalizações
meditativas. Essa faixa sonora foi escolhida para firmar a relação existente
entre os dois processos que deram concomitantemente: a criação do jogo Cani Buiu Oracle e a criação do EP Ecos Oníricos, ambos situados no
universo ficcional de MekHanTropia.
O EP Ecos Oníricos apresenta seis músicas autorais gravadas e editadas
por mim pelo celular. O eu-lírico da narrativa é o personagem Valdez, que busca
alternativas de resistência ao sistema de MekHanTropia por meio dos
sonhos, reflexões e conexões colaborativas transbinárias e transdimensionais,
atuando no autoconhecimento e escapando de padronizações maniqueístas
instituídas. Há também uma narrativa paralela transmidiática escondida no EP: junto
com as letras das músicas na plataforma BandCamp, há um miniconto mekhantrópico
dividido em seis partes. Um sonho dentro do sonho ali a ser experimentado e
que dialoga com os já citados Diários de
Quarentena de Valdez. De forma geral, Ecos
Oníricos tem como inspiração sonhos que tive durante o período pandêmico,
tecendo alusão a narrativas oníricas e fantásticas, reflexões existenciais e
contraculturais, devaneios pós-humanos transcendentais e experimentações sobre
realidades e dimensões colaborativas anti-mercadológicas que se interseccionam
e materializam-se artisticamente pela obra. O processo criativo iniciou-se de
lembranças (ao acordar) e interpretações subjetivas sobre sonhos que tive, além
da ideia de desconexão narrativa e conexão conceitual que os sonhos estabelecem
com os repertórios do sonhador (assim como o conceito do jogo Cani Buiu Oracle). Esses diálogos
estabelecidos entre sonhos, arte, ciência, tecnologias disponíveis ao meu
alcance, o contexto de pandemia, as parcerias e os múltiplos contatos da obra
expandem a experiência onírica original a novas dimensões conceituais que ecoam
de inconscientes que se cruzam, materializando artisticamente tais fenômenos
transcendentais.
Referências
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telemático? In: DOMINGUES, Diana. Arte, Ciência e Tecnologia – Passado,
Presente e Desafios. São Paulo: Editora Unesp, 2009. p. 305-318.
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da UNESP, 1997.
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Trad. Maurício Liesen. 1ª ed. Belo Horizonte: Âyiné, 2018.
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Carl Gustav. Sobre sentimentos e a sombra: sessões de perguntas de
Winterthur. 2ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 2015.
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São Paulo: Companhia das Letras, 2019.